A MINHA ESCOLA PRIMÁRIA
A Escola Feminina da Vargem, uma escola só de raparigas, foi
a minha escola primária.
Era uma das três escolas que então existiam acima da igreja
do Rosário; havia também a escola masculina e a escola mista. Funcionava no
rés-do-chão da casa do senhor Manuel da Vicencinha, uma casa de construção
ainda recente. Era uma sala grande, bem assoalhada, com duas portas altas
pintadas de verde-escuro a ladearem uma larga janela, e um terreiro comprido, o
nosso recreio, mesmo à beira da estrada.
À entrada da porta tínhamos logo à esquerda o quadro preto e
mesmo ao lado a secretária da professora; no canto direito estava a caixa
métrica e um armário castanho envidraçado onde a minha professora, a D. Fernandina
Brazão guardava alguns livros, os processos de capa azul com as provas que
fazíamos, os cadernos diários de capa vermelha, as revistas Fagulha e alguns
materiais.
As carteiras, daquelas pesadas em cujos bancos cabíamos
sentadas três alunas, ainda tinham os tinteiros brancos embora já não fossem
utilizados porque escrevíamos a esferográfica e não a caneta de pena. Era uma
sala sempre cheia, com muitas alunas, algumas já bem crescidas, que se
distribuíam no mínimo por três classes do ensino primário.
Tenho recordações muito boas da minha escola. Lembro-me da
facilidade com que aprendi a ler e do gosto com que aprendia tudo o que a
professora me ensinava.
Olho para trás no tempo, para o ano de mil novecentos e
sessenta e oito e vejo-me bem pequena, na primeira classe, ao lado da
secretária a ler a lição ao pé da minha professora; num instante estou a fazer
as primeiras contas de aritmética utilizando uns bonequinhos de plástico de várias
cores que saem de uma caixa guardada no armário castanho envidraçado, e lá vêm os
ditados que eu já sei de cor e escrevo de uma vez, ainda a professora não
terminou de ditar; dou um saltinho até ao recreio e lá estou eu, a ler para um
grupo de raparigas maiores que me rodeiam, encantadas com a facilidade com que
ainda tão pequena já consigo dominar a leitura.
Detenho por um momento o meu olhar, naquele degrau logo à
entrada da porta, onde nos sentávamos todas apertadas, atentas ao trabalho que
alguma de nós fazia no quadro. Lá estou eu sentada no meio, com a minha pedra
apoiada nos joelhos, cheia de contas de dividir e de multiplicar, o lápis de pedra já meio
pequeno porque se partiu ao cair no chão, a molhar uma ou outra vez o dedo na
saliva para apagar alguma coisa em que me enganei.
Não há campainha mas chegou a hora do recreio, e como não há
carros podemos brincar mesmo na estrada. Lá estamos nós em fila, de mãos dadas
aos pares, a cantar: - “ O mar está bravo, as ondas a bater, o mar está bravo,
meu amor vem ver!”E sempre de mãos dadas, lá vamos passando debaixo dos braços
levantados dos outros pares, até sermos o primeiro par da fila; começamos lá em
cima, quase ao pé da porta do senhor António Machado, e só paramos à porta do
senhor Garcês, sempre numa grande cantoria.
O tempo demora a passar mas já estou na quarta classe e este
ano vou fazer exame. Agora tenho um livro de História de Portugal e outro de
Ciências da Natureza. Começámos a aprender as províncias de Portugal e chegou o
dia de ir ao mapa dizê-las e apontar onde ficam. Quando a professora nos
pergunta se alguém quer ir ao mapa, apronto-me logo e lá vou toda contente. Já
sei a cantiga de cor pelas muitas vezes que a ouvi nos anos anteriores mas afinal ainda não sei localizar no mapa as províncias e as capitais, uma pequena falha que
em poucos dias será ultrapassada.
Feito o exame da quarta classe, juntamente com a alegria e o
orgulho por ter ficado aprovada, veio aquela tristeza acompanhada já de saudade
por ter de deixar a minha escola, onde passei quatro felizes anos da minha
vida. E foi nestes quatro anos que dentro de mim tomou forma o meu grande
desejo de me tornar professora.