domingo, 6 de agosto de 2017

Da Venezuela


CARTA DE CHAMADA

No tempo em que eu era pequena, havia famílias inteiras que embarcavam para a Venezuela. Primeiro ia o marido para arranjar trabalho e daí a uns tempos já mandava a carta de chamada para a mulher e os filhos irem ter com ele. E lá iam todos, deixando a casa fechada e vazia.

Partiam à procura de uma vida melhor mas no seu pensamento levavam os familiares que cá deixavam e o calado desejo de um dia voltarem à sua terra. E porque era imenso esse desejo, sempre haveriam de voltar ao lugar onde nasceram para matarem as saudades dos familiares, sobretudo dos pais que muitas vezes de lágrimas nos olhos acalentavam a esperança de que também um dia os iriam abraçar.  

Era nos meses de Verão que chegavam os venezuelanos para visitarem a sua terra, trazendo na bagagem os sinais do seu bem-viver.

Os homens chegavam ostentando a sua grande e bem nutrida barriga ou o farto bigode com as pontas bem retorcidas; de camisa aberta, mostrando o peito cabeludo, saltava à vista o colar de ouro com o crucifixo; no pulso brilhava o dourado do relógio e da pulseira, tão grossa que não podia passar despercebida, tal como também não passava despercebido o vistoso anel de ouro no dedo anelar.

Na venda, enquanto falavam dos seus negócios, os venezuelanos  iam pagando rodadas de cerveja a quem estivesse e todos ouviam e ficavam a saber como era viver naquela terra onde se podia ter tudo o que se quisesse e em poucos anos se enriquecia.

Enquanto por cá permaneciam o tempo era de festa. Não deixavam passar o arraial de Nossa Senhora do Monte, o Bom Jesus de Ponta Delgada, a festa do Loreto; muitos tinham as suas promessas e queriam pagá-las. Mas a mais importante de todas era a sua festa, o arraial de Nossa Senhora do Rosário, a padroeira da sua igreja. Lá de anos a anos havia um que era festeiro e tomava à sua responsabilidade todas as despesas da festa, mas quando tal não acontecia sempre faziam questão de contribuir com a sua choruda oferta para ajudar a igreja que os viu nascer; havia também quem oferecesse a novena do sábado do Rosário e quem mandasse celebrar missa cantada em louvor de Nossa Senhora.

Alguns traziam a família toda, mulher e filhos já nascidos na Venezuela.

Para os pequenos como eu, os filhos dos venezuelanos pareciam vindos de um mundo diferente do nosso. Vestiam roupas diferentes de nós, não gostavam da nossa comida, ficavam com o corpo todo cheio de bexigas por causa do nosso clima e falavam uma linguagem que nós não percebíamos. Nós olhávamo-los com uma certa estranheza, tentando perceber o que diziam e questionando-nos por que razão os pais não lhes ensinavam a falar em português se assim tinham aprendido. E por entre o “mira para aqui, mira para ali” e o “pero, no es assí”, lá nos íamos entendendo no meio daquela embrulhada de palavras desconhecidas.

Todo o venezuelano que bem se prezasse, juntava a família e fazia uma grande festa no Chão dos Louros. Era uma festa de arromba, em que compravam um quarto de uma vaca, umas dúzias de grades de cerveja, e lá passavam juntos todo o dia, comendo e bebendo “até a lancha encostar”, até os homens ficarem “borrachos”.

Assim que se passava a Festa do Rosário, os embarcados iam outra vez embora. Por entre lágrimas e abraços de despedida regressavam à Venezuela, deixando na sua terra a saudade e levando consigo a esperança de um novo regresso.

 

Funchal, 05-08-2017