BRASAS PARA ACENDER O LUME
O lar estava aceso todo o dia, de manhã até à noite.
A mãe que era sempre a primeira a se levantar ia logo
acendê-lo, umas vezes com um galho de urze seca e uns gravetos de pinheiro, outras
vezes com uma pinha e umas rachinhas de lenha mais delgadinhas para o lume pegar
melhor, ou mesmo com um bocado de jornal velho ou papel de embrulho que se
trouxera da venda, a servir de acendalha.
Às
vezes, nas frias e escuras manhãs de inverno, quando a mãe se levantava de
madrugada para gastar duas ou três linhas no bordado, o pai ainda debaixo dos
cobertores gritava em voz alta e na brincadeira “_ Ó velha, põe água no fogo!!!...”
dizendo que estava na hora de acender o lume e fazer o café, mas claro que a mãe
já o tinha feito antes de qualquer outra coisa.
Assim se mantinha o lar aceso ao longo de todo o dia, para
isso bastava meter debaixo da “tempra” (trempe) uma racha de lenha de faia ou
de louro que ardia lentamente e mantinha as brasas acesas durante mais tempo.
Não podia faltar brasas no lar, o lume era sempre preciso
para cozer o almoço e o jantar e também para cozer uma panela de semilhas
cortadas, bolotas de inhame ou batatas miúdas para o porco e para as galinhas porque
os bichos também precisavam de comer. E as brasas no lar davam sempre jeito,
quando às vezes nos apetecia assar umas batatas ou semilhas que tinham ficado
na travessa do almoço (tapada com a toalha vermelha de xadrez, em cima da mesa
da cozinha), ou mesmo assar uma meia dúzia de castanhas quando era o tempo
delas; bastava metê-las em cima das brasas, deixar um bocadinho a assar e logo
tínhamos um lambisco para consolar o estômago.
Neste tempo de enorme viver em comunidade, quase tudo se
pedia e quase tudo se emprestava. Quando no dia-a-dia alguma vizinha tinha
falta de qualquer coisa socorria-se da vizinha do lado que só não ajudava se
não tivesse maneira de o fazer.
A mãe costumava dizer que “água e lume não se nega a ninguém”
e na nossa casa era assim que acontecia. Quando uma ou outra vizinha precisava acender
o lume quase sempre vinha à nossa casa pedir umas brasinhas.
Muitas vezes ouvimos a tão habitual pergunta da qual já se
sabia a resposta “_ Teresinha, tem umas brasinhas que me dê?...”. E lá vinha a
Maria Teresa com um grande caco de telha de canudo onde levava as
brasas incandescentes para acender o lume em casa. Com toda a atenção eu observava o jeito como ela tirava
as brasas da “tempra” para o caco de telha; normalmente puxava-se as brasas com
um tição, mas ela metia a mão (parece que ainda estou a ver as mãos dela vermelhas!...), puxava-as todas de uma vez e não se queimava. Eu
arregalava os olhos de espanto ao ver como ela conseguia fazer aquilo e ainda
hoje me pergunto como é possível pegar em brasas vivas sem queimar as mãos.
São pequenas vivências, aparentemente sem qualquer significado,
que os tempos modernos arrumaram numa daquelas minúsculas gavetas cheias de
lembranças que constituem a nossa memória. Mas são estas mesmas simples
vivências que nos moldaram a alma e foram aprimorando a essência do que somos
hoje.
Funchal, 28-02-2020