sábado, 5 de abril de 2025

Pergaminhos afectivos


 

UMA IDA À CIDADE

No Verão de 1975, quando fiz catorze anos, fui à cidade com a tia.

Fomos no carocha da tia, penso que numa das poucas vezes que ela levou o seu carro ao Funchal, porque mais tarde já ia sempre de camioneta.

Ficámos em casa da D. Maria José, uma enfermeira muito amiga da tia, que um tempo depois veio a ser a minha madrinha do Crisma.

Eu estava a crescer e precisava de sapatos porque os que tinha já me estavam apertados, o meu dedo grande do pé já andava encolhido, e além disso, também queria andar à moda como as outras raparigas do colégio. Portanto, a primeira coisa a fazer foi comprar os meus sapatos.

A tia levou-me à Sapataria Inglesa, na Rua da Carreira, e ali escolhi uns sapatos a meu gosto, porque até essa idade sempre tinha usado os escolhidos pela mãe, que os comprava quando ia à cidade e antes de ir me tirava a medida do pé com um lápis, numa folha de papel da venda. Senti-me já uma rapariga grande, até mais alta do que era, com os meus sapatos novos de tacão alto escolhidos por mim.

Resolvida a compra dos sapatos, fomos logo de seguida à Papelaria do Colégio onde a tia me comprou diversos materiais escolares para o meu 4º Ano do Liceu que no mês de Outubro seguinte se iria iniciar: uma capa de pele, que escolhi vermelha e com bandeirinhas de diferentes países, para eu levar os livros no braço à semelhança das raparigas dos anos mais avançados do colégio; um rolo de papel em tons de vermelho-escuro para forrar os livros, e alguns cadernos (daqueles que traziam as fábulas na contracapa); um bom compasso de marca Kern (numa caixinha vermelha completa com todos os acessórios), tinta-da-china, guaches e pincéis, tudo o que era preciso para as aulas de Desenho.

É bem possível que a tia me tenha comprado mais qualquer coisa ou mesmo alguma peça de roupa, mas o que realmente para mim teve um grande valor foram os meus sapatos de tacão alto e os materiais escolares que a tia me comprou. A capa de pele e o compasso resistiram ao tempo e permanecem arrumados junto com alguns livros e mais coisas minhas na cantoneira da nossa casa, como testemunhas afectivas do meu tempo de escola.

São fragmentos da minha vida e das pessoas importantes que por ela passaram, valiosos pergaminhos da minha história. 


 

 

Funchal, 05 de Abril de 2025