domingo, 25 de setembro de 2016

À espera do arraial do Rosário


UM VESTIDO NOVO

Todas as mulheres e raparigas queriam ter um vestido novo para a Festa do Rosário. Então, logo depois do Bom Jesus da Ponta Delgada, as costureiras não tinham mãos a medir.

Pela manhã ou ao fim da tarde havia um vaivém, Caminho do Encontro acima, Caminho do Estreito abaixo, para casa da costureira, primeiro para tirar as medidas, depois pelo menos mais duas vezes para acertar o vestido e finalmente para levar o fecho, as molas ou os colchetes, as marcas ou os botões, tudo em segredo para que ninguém copiasse o modelo.

O vestido era estreado no Domingo do Rosário, o dia da missa solene e saída na procissão, com muitas promessas a serem cumpridas de círio aceso na mão; os olhares eram muitos, alguns até muito pouco discretos, e ao fim da tarde, quando a maior parte dos romeiros já se tinha ido embora para a sua freguesia e o adro da igreja já se encontrava mais à larga, muitas das conversas aos pares versavam sobre o vestido desta e daquela e qual deles seria o mais bonito.

Os padrões dos tecidos eram muito variados, alguns tinham vindo da Venezuela oferecidos por familiares, mas os modelos não diferiam assim tanto, porque a criatividade da costureira também tinha os seus limites; saia de pregas ou godés (água-dez, como se dizia!...), mais uma ou duas pregas aqui, outro macho acolá, manga simples ou franzida, gola redonda ou em bico, cabeção à sport, fecho atrás ou botões à frente, com ou sem algibeiras… Todos diferentes, mas sempre com algum pormenor semelhante porque a costureira também era a mesma.

Para compor a indumentária, não poderiam faltar os sapatos novos, comprados também em segredo na cidade, ali nas sapatarias da Rua dos Tanoeiros conhecida como a rua dos sapatos. Então dava-se a coincidência de surgirem na festa duas ou três raparigas com sapatos iguaizinhos, apesar de todo o segredo que envolveu a sua compra, o que era sempre motivo de alguma desilusão para aquelas que gostavam de um modelo exclusivo.

Na nossa casa, a mãe, eu e as minhas irmãs também tínhamos o nosso vestido novo para a Festa do Rosário. Lembro-me particularmente de um vestido que a mãe nos mandou fazer, quando éramos bem pequenas, ainda Teresa não tinha nascido.

A mãe veio à cidade, comprou popelina às florinhas, em tons suaves de rosa e azul e mandou fazer-nos na costureira, três vestidos iguais. De cintura descida como então se usava, franzido na cintura como a mãe sempre gostou, manga curta, cabeção redondo, uma palinha debruada com bordado suíço, abotoado atrás com botões e um palmo acima do joelho, porque nesse tempo a moda era a da minissaia. Estou a ver-nos as três com esse vestido e devo ter gostado tanto dele que me ficou na lembrança.

Mudam-se os tempos, e o que naquele tempo era de suprema importância é hoje apenas uma querida memória. A Festa do Rosário continua a estar intimamente ligada à vida de todos os que, tal como eu, ali nasceram e cresceram. É a nossa festa, o nosso arraial. Nossa Senhora do Rosário é a nossa padroeira a quem nunca deixaremos de manifestar a nossa imensa devoção, mas o vestido novo obrigatório para essa ocasião há muito tempo deixou de fazer sentido. O que não pode deixar de fazer sentido é ter fé e acreditar que Nossa Senhora do Rosário será sempre a nossa protectora!...

sábado, 17 de setembro de 2016

Rezas e benzeduras


DORES DE BARRIGA OU MAU-OLHADO

As rezas e as benzeduras faziam parte do dia-a-dia.

Quando alguém se sentia maldisposto, sem vontade de comer, com dores de cabeça ou com a cabeça estonteada recorria à curandeira que tinha rezas para todos os males: tanto podia ser uma camada de olhado, como um ar que tinha passado ou então o sol na cabeça que havia provocado aquele mal. Até se curava os animais que por vezes também eram alvo da inveja e do olho gordo de algum vizinho.

 Na nossa casa não era hábito a mãe levar-nos a curar do olhado, embora de vez em quando contasse aquele episódio de uma camada de olhado que alguém me deu quando eu ainda era criança de peito. Indo a mãe comigo ao colo a caminho das Fontes para visitar a avó Silvéria, uma vizinha dali perto olhou para mim e disse-lhe que tinha uma menina muito bonita, parecida com a avó Serafina. A mãe ficou contente com o elogio e ao chegar a casa contou o sucedido à avó Serafina, pensando que também ela haveria de ficar contente, mas tal não aconteceu. A avó respondeu que não lhe agradava nada gabas como aquela, ainda mais vindas daquela pessoa que ela conhecia muito bem. Olhado ou não, o certo é que no outro dia a menina só vomitava e não queria comer nada. E desde esse dia ficou decidido que quando a mãe precisasse de ir às Fontes a menina ficaria em casa com a avó para que não voltasse a suceder o mesmo.

Depois de todos um pouco já mais crescidos, quando nas nossas brincadeiras dávamos cabriolas em cima da cama ou virávamos o sino nas estacas da vinha, de vez em quando vinham as dores de barriga e o bucho virado. Então era mesmo a mãe que nos curava com uma massagem na barriga. Mandava-nos deitar em cima da cama e esticar as pernas; depois, com um bocadinho de banha de porco que tirava da púcara de barro lá nos ia massajando a barriga, as suas mãos escorregando de um lado e de outro deixando-nos a pele lustrosa e brilhante; dizia para ficarmos quietos e de boca fechada para ouvirmos a nossa barriga a roncar e realmente era assim que acontecia. Não sei com quem a mãe aprendeu a dar estas massagens, mas a verdade é que até alguns pequenos da vizinhança, quando estavam com o bucho enfustado, vinham à nossa casa para a mãe lhes passar a mão na barriga.

Eu não gostava nada destas massagens e o que me valia é que muito raramente me dava dores de barriga. Quando isso acontecia lembrava-me da Teresinha Batata, uma curandeira de lá de baixo das Feiteiras que costumava vir a casa da prima. Alta e esguia, de pele morena e toda vestida de preto porque com certeza seria viúva, só de olhar para aquela mulher eu já ficava cheia de medo. As suas mãos escuras, magras e de dedos compridos provocavam-me uma angústia só de imaginá-las a escorregar na minha barriga. Por isso, assim que eu a via chegar a casa da prima, fugia para casa com medo que também me viesse curar, e só voltava depois de ela se ter ido embora.

Para além desta muito remota lembrança, quando já era um pouco maior, às vezes também ia acompanhar alguma vizinha a casa da mulher do Gibinha que sabia curar de olhado. Em silêncio eu observava atentamente e ia ouvindo toda aquela reza que ela dizia enquanto ia fazendo cruzes com um galhinho de alecrim. Duas palavras me ficaram na lembrança - a postura e a formosura - que alguém podia invejar, e o modo como ela arrematava a sua reza, ao qual eu achava muita graça: - Este mal, deste corpo seja tirado, àquele mar seja deitado. O mar é poderoso, pode com o bem e com o mal. Fora mal!

 E porque se acreditava que estas rezas faziam bem, ao fim dos dias certos para essas benzeduras, aquele que se ia curar sentia-se logo melhor, porque o mal já lhe havia sido tirado.

Mas era preciso acreditar!...