sábado, 24 de junho de 2017

Vai passar a procissão...


A FESTA DO SENHOR

A Festa do Senhor era a primeira festa do Verão, pois costumava realizar-se logo no início do mês de Julho.

Não era um arraial, nem tinha comparação com a festa do Rosário; era uma festa pequena, feita com os donativos do povo da paróquia, mas havia fogo-de-artifício e banda de música e todos se empenhavam para que fosse uma festa bonita.

No meu tempo de pequena, a procissão com o Santíssimo Sacramento subia o caminho da Vargem, desde a igreja até ao largo da ponte. Ali instalava-se um altar que ficava encaixado na parte mais estreita do caminho, entre o portal da casa do padrinho, o senhor Faria, e o muro do lado da ribeira.

Pouco me lembro da celebração propriamente dita porque seria ainda bem pequena, com certeza ainda não andava na catequese nem compreendia o momento em si. Mas tenho bem nítida na minha memória toda a azáfama e preparação do solene acontecimento.

Ainda consigo ver as mulheres e raparigas a fazerem o tapete de flores da ponte até à Rochinha; no meio delas a Teresinha Hilária a destinar por um lado e por outro, distribuindo a esta e àquela os vários modelos de flores desenhadas em folhas de papel vegetal e a dar-lhes todas as indicações de como deveriam proceder.

 O altar ficava bonito depois de pronto: o retábulo brilhava com a nossa manta vermelha que o pai tinha trazido do Curaçau, e era sempre utilizada nesta ocasião; aos lados, vasos de avenca e fetos de metro compunham a decoração em que sobressaía a branca e alva toalha bordada com linha azulada a caseado e bastidas, sobre a qual emergiam, muito solenes e elegantes com as velas acesas, os dois grandes castiçais de prata.

As janelas das casas também se engalanavam para a cerimónia: nas janelas da casa da madrinha ondulavam penduradas as mantas e colchas bonitas e nas janelas da casa do Viveiros, cheirando a naftalina, as nossas mantas, a azul e a de anjos, também esperavam com toda a devoção a chegada do Santíssimo Sacramento.

O largo da ponte ficava cheio de gente para assistir à solenidade, e em todas as almas penetrava o cheiro a incenso que se espalhava por todo o lado.
Ainda bem pequena, muito pouco eu conseguia ver do que se passava à frente do altar; por muito que me esticasse e me pusesse em pontas de pés, o meu olhar só alcançava o pálio dourado por cima das cabeças da grande multidão que ocupava de forma pouco habitual aquele familiar espaço onde durante os restantes dias do ano havia sempre à vontade lugar para grandes e pequenos.

Assim me ficou na lembrança a Festa do Senhor do meu tempo de criança.

 

 

sábado, 10 de junho de 2017

A água do arroz...


O ARROZ BEM LAVADO

À casa da madrinha nós íamos quase todos os dias, ou porque a mãe lá nos mandava dar um recado e fazer qualquer outra coisa ou mesmo só pela visita.

Eu gostava de ir a casa da madrinha para ler os jornais e as revistas; sentava-me na cadeira de vimes com uma fronha enramada de cores garridas, em frente à janela da cozinha, e ali passava um bocado do meu tempo a divagar pelo mundo das histórias e das letras. Às vezes ajudava em pequenas tarefas, como lavar a loiça ou enxugá-la e arrumá-la na mesa vermelha; outras vezes, enquanto a madrinha preparava o almoço íamos conversando sobre acontecimentos do dia-a-dia. No meio destas conversas, muitas vezes vinha a propósito histórias de outros tempos que a madrinha sempre contava com alguma graça; dessas histórias, muitas  ficaram-me na lembrança e basta às vezes um pequeno gesto ou uma palavra para que me saltem no fio da memória.

Certo dia, estava a madrinha na pia do terreiro da cozinha a lavar o arroz para cozer e eu ao seu lado ia observando atentamente o jeito como o fazia, enquanto falávamos de coisas banais. A dada altura, a madrinha perguntou-me em quantas águas se devia lavar o arroz. Prontamente respondi que deveria ser pelo menos em duas águas como a mãe já me tinha ensinado. Então a madrinha contou-me a história de uma senhora que pretendia contratar uma criada e a pergunta que fazia às raparigas que se lhe apresentavam era em quantas águas lavavam o arroz. Das várias candidatas ao serviço, umas respondiam que bastava uma água, outras que o faziam em duas ou três águas; finalmente uma delas respondeu que lavaria o arroz nas águas que fossem precisas, portanto foi essa que foi contratada. Aquela resposta da rapariga que a madrinha repetiu de uma forma um tanto enfática – “As águas que forem precisas, minha senhora!!...” - ficou-me para sempre guardada na memória.

Muitas vezes me pergunto o porquê de ter gravado na minha mente um episódio aparentemente sem importância alguma. Mas certamente teve para mim muito significado, porque ainda hoje, todas as vezes que estou a lavar o arroz para cozer, lembro-me da madrinha e desta história que me contou à volta da pia do terreiro da cozinha, no tempo em que eu era ainda uma criança e pouco sabia da vida.

 

Funchal, 10-06-2017