domingo, 26 de novembro de 2017

Natal das crianças


AS CANTIGAS DO NATAL

As cantigas faziam parte da nossa vida diária, pois todos nós gostávamos de cantar, tínhamos bom ouvido e facilidade em aprender as cantigas que ouvíamos. Acho até que com certeza aprendemos a cantar ao mesmo tempo que aprendemos a falar, quando escutávamos a alegre e bonita voz da mãe a cantar enquanto cuidava de nós. Assim fomos crescendo e naturalmente manifestando aquele gosto de cantar que nos acompanha desde esse tempo da nossa infância.

Não havia dia em que não se cantasse e qualquer momento era apropriado. Enquanto mais pequenos, cantávamos à volta das nossas brincadeiras, debaixo da vinha; depois um pouco já maiores, cantávamos a arrumar a cozinha, a lavar a loiça ou a varrer o terreiro, a apastorar a casa ou a engomar a roupa no sábado à tarde. O repertório era muito variado, desde as cantigas que se ouvia na rádio, às músicas populares e tradicionais ou mesmo as cantigas que ouvíamos na igreja.

Com o aproximar do tempo da Festa, as cantigas eram naturalmente os cânticos da Missa do Parto, as cantigas das romarias de anos passados e os cânticos de Natal, os que cantávamos na Missa do Galo e alguns que tínhamos aprendido na escola.

Quando chegava o dia oito de Dezembro, o dia de Nossa Senhora da Conceição, em que a Festa já se fazia anunciar, começava uma ansiedade que nos dava a impressão de que nunca mais aquele dia chegava e começava também aquela incerteza misturada com um leve receio de ser ou não convidada para cantar no coro das pensadeiras que iam pensar o Menino Jesus na Noite de Natal.

Eu comecei bem pequena, talvez quando entrei na escola primária, nestas andanças de pensar o Menino na Noite de Natal. Passava os dias numa roda-viva, a ensaiar todas as tardes até saber bem as cantigas. E todos os anos se repetia a mesma rotina, o mesmo rodopio dos ensaios para aquela grande Noite. Era uma alegria responder ao anjo que estava no púlpito a anunciar o Nascimento.

Num desses anos, e como já soubesse de cor todas as cantigas, fui escolhida para ser o anjo e cantar no púlpito a anunciação. Disse imediatamente que não queria ser, porque só de imaginar toda aquela gente que enchia a igreja a olhar para mim, surgia dentro de mim um nervoso miudinho que me fazia rir e desatar às gargalhadas. Mas tanto insistiram que lá me convenceram, embora contra a minha vontade.
 
Quando cheguei a casa contei à mãe a novidade e assim que Pedro soube que eu seria o anjo disse logo à mãe que nem ia à missa porque já sabia que eu ia começar a rir no meio das cantigas.

Depois de vários ensaios e a uma semana da Noite de Natal, chegou a altura de ensaiar no púlpito da igreja, e então nesse dia aconteceu mesmo o que eu desde o início sempre temera: embora a igreja estivesse completamente vazia, o nervoso miudinho tomou conta de mim, deu-me vontade de rir e não fui capaz de cantar as cantigas seguidas do princípio ao fim. Então decidiram que outra pequena seria o anjo e eu continuaria a cantar no coro das pensadeiras, o que para mim foi alívio total; e assim continuei por mais alguns anos, a cantar e a pensar o Menino até me tornar rapariga.

Este foi um momento engraçado que me ficou para sempre na lembrança, junto com aqueles momentos em que cantávamos à volta da mãe, sentada a bordar à janela do nosso quarto, ou quando cantávamos as nossas cantigas de Natal à volta da nossa lapinha, cuja montagem era sempre de Pedro, o nosso irmão mais velho que no final quase sempre tocava gaita para animar as nossas cantorias.

Os anos passam e as canções de Natal fazem-me sempre vibrar e sentir muita daquela magia que antecedia a nossa Festa. A cada Natal que passa, continuo a ouvir lá dentro da minha alma as nossas cantigas, as nossas vozes e gargalhadas. E é tudo isso que me faz lembrar que é outra vez Natal!

 



 

 

sábado, 11 de novembro de 2017

São Martinho, castanhas e vinho


SÃO MARTINHO, DIA DE PROVAR O VINHO

 

Na nossa casa, no tempo das castanhas, havia castanhas assadas todos os dias: à noite era sempre uma festa...

No dia de São Martinho, o pai encetava o vinho novo. Tirava o vinho da pipa com uma mangueirinha usada só para aquele fim e passava para o jarro. Se o vinho estivesse claro já podia colocar a torneira na pipa, mas isso seria só daí a alguns dias, quando lhe desse jeito.

Outros tempos!... Coisas que deixam saudades!... 

domingo, 5 de novembro de 2017

À sombra da latada...


UVAS BRANCAS E UVAS AMERICANAS
Como a maioria das casas madeirenses, a nossa casa também tinha a sua latada. Era uma boa latada de vinha que se estendia desde o terreiro da cozinha até ao corgo, lá mais adiante. Como todas as casas, tinha também um terreiro de pedra calçada e um assento onde se sentavam a bordar ou a conversar as vizinhas que diariamente e por qualquer motivo subiam os degraus do nosso portal para virem à nossa casa.

Nos primeiros anos da minha meninice, ainda em tempo da avó Serafina, havia no terreiro uma parreira de uvas brancas, e mesmo na beira da vinha uma outra parreira de uvas americanas que faziam sombra e exalavam o seu perfume por todo o lado, fazendo despertar os nossos sentidos mal se abria a porta de casa. Estas duas parreiras ocupavam um lugar de destaque na latada porque eram diferentes das outras destinadas para fazer o vinho, e eram o orgulho do pai que lhes devotava o mais profundo cuidado para que nos desse os mais belos cachos de uvas que se pudesse saborear. Mas depois a casa foi toda reconstruída, o terreiro foi cimentado para ser mais fácil de varrer (quando era de pedra calçada tínhamos que varrer com uma vassoura de urze), e lá se foi a parreira de uvas brancas.    

A latada de vinha dava cor e alegria à nossa casa, tal e qual um adereço no colo de uma jovem e comprometida rapariga. Na Primavera e no Verão, o verde da folhagem e dos cachos de uvas, aquele verde próprio dos frutos que ainda estão a crescer, fazia realçar o vermelho alaranjado do novo telhado e o ainda fresco amarelo-claro da chaminé e das paredes da casa que cheirava a nova. Quem olhasse do Lombo do Cantaria ou desde a curva da Achada do Beirão apenas conseguia ver, no meio de todo aquele verde, o telhado da casa e logo atrás a cumeeira do palheiro de restolho que desde sempre ali estivera. Quando chegava o Outono, e assim que se fazia a vindima, as folhas tingiam-se com vários tons de vermelho e quase se confundiam com a cor do telhado; depois tombavam nas voltas e reviravoltas do vento sul que acompanhava as primeiras chuvas mal o Inverno se fazia anunciar, deixando nuas as parreiras, tal como a casa que igualmente se mostrava assim meio despida sem aquele seu precioso adereço.

A vinha era como uma extensão da nossa casa, o nosso grande quintal. O chão de terra batida era o palco dos nossos jogos e brincadeiras; à sua sombra a mãe sentava-se nas longas tardes de Verão, quando lhe sobrava algum tempo para gastar uma linha no bordado; e quando o pai chegava mais cedo do Lombo ou das Fajãs também aproveitava para ali descansar um bocado, sentado no degrau do palheiro, aproveitando para um dedo de prosa com um ou outro vizinho.

Para nós seria impensável imaginar a nossa casa sem a latada de vinha, pois fazia parte dela e também da nossa vida.

 
Funchal, 04-11-2017