A MATANÇA DO PORCO
Na nossa casa, a matança do porco era um dos acontecimentos
mais importantes e esperados de todo o ano.
O dia reservado para esse fim era por tradição o dezoito de Dezembro,
uma semana exacta para o dia de Festa, mas os preparativos começavam muito
antes. Logo que o feijão seco tinha sido apanhado, o pai já guardava o zelo no
sobrado do palheiro para depois ser usado no lume que ia chamuscar o pêlo do
porco. Também as salgas e as púcaras de barro para a carne de vinha d’alhos, a
banha e os torresmos tinham que ser lavadas e arranjadas para estarem prontas nesse dia, para
além de outros apetrechos necessários que o pai também arranjava, porque só ele
mesmo é que sabia o que era preciso.
Na véspera, a mãe fazia uma amassadura de pão. O forno era
aceso logo de manhã, com um molho de lenha de faia, trazida da serra mesmo para
esse fim. Fazia-se mais do que uma fornada de rosquilhas e maios porque no dia
da matança, vinha muita gente para ajudar e tinha que haver comida de fartura.
Enquanto isso, o pai improvisava um lar na rua e já lhe colocava em cima um
grande bidão que nós enchíamos de água para ser fervida e serviria para pelar o
couro do porco.
O dia começava bem cedo, ainda de madrugada, quando o pai se
levantava e acendia o lume para ferver a água do caldeiro e também a mãe se
levantava e punha ao lume a panela do café. Ainda nem tinha bem amanhecido e já
chegava o tio Manuel das Fontes. Sempre sorridente e com boa disposição como
era próprio do seu feitio, sentava-se à mesa da cozinha e logo tomava o seu
groguezinho, daquela aguardente de caldeira que sempre havia em casa e era
imprescindível neste dia. Enquanto tomava o seu café ia conversando com a mãe e
eu ainda na cama, entre um sono e outro, já ia ouvindo as suas alegres risadas.
Depois iam chegando os outros homens, o tio Sousa, o João
Lúcio (que desde o tempo da avó Serafina costumava ajudar na nossa casa e sem ele não se fazia nada!...), e mais alguns que tinham sido chamados para ajudar. Destes, pouco se lhes
ouvia a voz, aquela que sobressaía mesmo era a voz do tio Manuel, cujas
gargalhadas ressoavam por toda a casa.
O dia era de muito trabalho para grandes e pequenos. Enquanto
os homens arranjavam o porco, as mulheres na cozinha preparavam o sangue cozido
e temperavam-no com pimenta, alho e salsa picada, azeite e vinagre. Logo seria
degustado com pão de rosquilha, café, ou um copo de vinho a acompanhar. Depois fazia-se
o almoço: semilhas americanas com casca e uma risca à volta que seriam
acompanhadas pelas vísceras do porco, o fígado e os pulmões cortados em
bocadinhos e arranjados na panela com cebola, tomate, alho e louro e um bom
copo de vinho para engrossar o molho.
Depois de limpo e arranjado o porco era levado para a loja. Eram
precisos vários homens para carregar o bicho às costas porque habitualmente era
muito grande. O pai sempre teve aquela presunção de ter o porco mais gordo das
redondezas e por isso era impossível ser carregado apenas por dois ou três
homens. Era pendurado numa trave da loja, com a cabeça para baixo e como às
vezes era muito grande o pai teve de escavar uma pequena cova no chão de terra
batida da loja, para se lhe colocar o alguidar de barro por baixo do focinho. Em
cima das patas dianteiras colocavam-lhe o véu, aquele arrendado de gordura que
lhe cobria as tripas; no lombo, de cima a baixo, era feito um profundo golpe
que deixava ver a largura da carne gorda.
Por toda a tarde chegavam à nossa casa, vizinhos e amigos para
tomarem um copo e verem o porco pendurado na loja. Com os dedos das mãos juntos
que metiam no golpe do lombo, os homens mediam a carne gorda, faziam
estimativas e davam palpites sobre qual seria o real peso do bicho.
Depois de toda esta azáfama, o trabalho ainda não tinha
terminado; faltava a lavagem das tripas, tarefa que normalmente cabia às
raparigas e rapazes, à qual os mais pequenos também gostavam de dar a sua ajuda.
As tripas eram lavadas na água corrente da ribeira e com a ajuda de uma cana
delgadinha eram viradas do avesso. Depois, com um tubinho de baraço de abóbora,
enchiam-se de ar as mais lisas formando várias argolas que eram postas a secar
enfiadas num pau ou num bocado de canavieira e depois serviriam para fazer as
nossas linguiças com a carne de vinha d'alhos. As tripas mais grossas, depois de bem preparadas seriam
postas a curar no fumeiro, para depois se fazer com elas uma boa sopa de
abóbora ou de agrião.
A festança só terminava já pela noite dentro depois de se ter
feito a picada do porco, mas o trabalho não estava acabado, ainda muito havia
por fazer.