domingo, 20 de novembro de 2016

A caminho da Festa!...


A MATANÇA DO PORCO

Na nossa casa, a matança do porco era um dos acontecimentos mais importantes e esperados de todo o ano.

O dia reservado para esse fim era por tradição o dezoito de Dezembro, uma semana exacta para o dia de Festa, mas os preparativos começavam muito antes. Logo que o feijão seco tinha sido apanhado, o pai já guardava o zelo no sobrado do palheiro para depois ser usado no lume que ia chamuscar o pêlo do porco. Também as salgas e as púcaras de barro para a carne de vinha d’alhos, a banha e os torresmos tinham que ser lavadas e arranjadas para estarem prontas nesse dia, para além de outros apetrechos necessários que o pai também arranjava, porque só ele mesmo é que sabia o que era preciso.

Na véspera, a mãe fazia uma amassadura de pão. O forno era aceso logo de manhã, com um molho de lenha de faia, trazida da serra mesmo para esse fim. Fazia-se mais do que uma fornada de rosquilhas e maios porque no dia da matança, vinha muita gente para ajudar e tinha que haver comida de fartura. Enquanto isso, o pai improvisava um lar na rua e já lhe colocava em cima um grande bidão que nós enchíamos de água para ser fervida e serviria para pelar o couro do porco.

O dia começava bem cedo, ainda de madrugada, quando o pai se levantava e acendia o lume para ferver a água do caldeiro e também a mãe se levantava e punha ao lume a panela do café. Ainda nem tinha bem amanhecido e já chegava o tio Manuel das Fontes. Sempre sorridente e com boa disposição como era próprio do seu feitio, sentava-se à mesa da cozinha e logo tomava o seu groguezinho, daquela aguardente de caldeira que sempre havia em casa e era imprescindível neste dia. Enquanto tomava o seu café ia conversando com a mãe e eu ainda na cama, entre um sono e outro, já ia ouvindo as suas alegres risadas.

Depois iam chegando os outros homens, o tio Sousa, o João Lúcio (que desde o tempo da avó Serafina costumava ajudar na nossa casa e sem ele não se fazia nada!...), e mais alguns que tinham sido chamados para ajudar. Destes, pouco se lhes ouvia a voz, aquela que sobressaía mesmo era a voz do tio Manuel, cujas gargalhadas ressoavam por toda a casa.


O dia era de muito trabalho para grandes e pequenos. Enquanto os homens arranjavam o porco, as mulheres na cozinha preparavam o sangue cozido e temperavam-no com pimenta, alho e salsa picada, azeite e vinagre. Logo seria degustado com pão de rosquilha, café, ou um copo de vinho a acompanhar. Depois fazia-se o almoço: semilhas americanas com casca e uma risca à volta que seriam acompanhadas pelas vísceras do porco, o fígado e os pulmões cortados em bocadinhos e arranjados na panela com cebola, tomate, alho e louro e um bom copo de vinho para engrossar o molho.

Depois de limpo e arranjado o porco era levado para a loja. Eram precisos vários homens para carregar o bicho às costas porque habitualmente era muito grande. O pai sempre teve aquela presunção de ter o porco mais gordo das redondezas e por isso era impossível ser carregado apenas por dois ou três homens. Era pendurado numa trave da loja, com a cabeça para baixo e como às vezes era muito grande o pai teve de escavar uma pequena cova no chão de terra batida da loja, para se lhe colocar o alguidar de barro por baixo do focinho. Em cima das patas dianteiras colocavam-lhe o véu, aquele arrendado de gordura que lhe cobria as tripas; no lombo, de cima a baixo, era feito um profundo golpe que deixava ver a largura da carne gorda.

Por toda a tarde chegavam à nossa casa, vizinhos e amigos para tomarem um copo e verem o porco pendurado na loja. Com os dedos das mãos juntos que metiam no golpe do lombo, os homens mediam a carne gorda, faziam estimativas e davam palpites sobre qual seria o real peso do bicho.

Depois de toda esta azáfama, o trabalho ainda não tinha terminado; faltava a lavagem das tripas, tarefa que normalmente cabia às raparigas e rapazes, à qual os mais pequenos também gostavam de dar a sua ajuda. As tripas eram lavadas na água corrente da ribeira e com a ajuda de uma cana delgadinha eram viradas do avesso. Depois, com um tubinho de baraço de abóbora, enchiam-se de ar as mais lisas formando várias argolas que eram postas a secar enfiadas num pau ou num bocado de canavieira e depois serviriam para fazer as nossas linguiças com a carne de vinha d'alhos. As tripas mais grossas, depois de bem preparadas seriam postas a curar no fumeiro, para depois se fazer com elas uma boa sopa de abóbora ou de agrião.


A festança só terminava já pela noite dentro depois de se ter feito a picada do porco, mas o trabalho não estava acabado, ainda muito havia por fazer.




sábado, 12 de novembro de 2016

Personagens de antigamente


PERSONAGENS REAIS

Foram várias as personagens interessantes que povoaram o universo da nossa infância. Algumas delas conhecemos realmente porque ainda viveram no nosso tempo, outras conhecemos só de nome pelas muitas vezes que surgiam nas histórias que a mãe nos contava.

Umas vezes era o Molicos Carvalhal, vizinho quase do pé da porta, que surgia do antigamente para ilustrar qualquer assunto que se estivesse a falar; outras vezes era a Pestaninha que vinda lá dos lados do Porto Moniz chegava com a sua voz resmungona e mesmo sem pedir licença também entrava na história; e não poderia faltar o Santo Antoninho que costumava vir sempre à festa do Rosário e se metia com as raparigas dirigindo-lhes galanteios que nenhuma delas apreciava. Mas o Franco era, sem qualquer dúvida, a personagem que mais vezes entrava nas histórias da mãe.

O Franco vivia sozinho numa simples e modesta casinha de palha, nas Fontes, perto da casa da nossa avó Silvéria. Segundo contava a mãe, era fraco do juízo e dependia da ajuda da vizinhança para sobreviver. O porto de abrigo do Franco era a casa da avó que com a sua caridade e generosidade muitas vezes lhe matava a fome, embora toda a vizinhança o ajudasse no que fosse preciso. E porque tanto a mãe como a tia sempre falavam dele, foram várias as histórias do Franco que ficaram na nossa memória.

Contava a mãe que na véspera da visita do Espírito Santo, as raparigas juntavam-se e arrumavam-lhe a casa de modo a ficar apresentável para a Divina Visita. Uma vez arranjaram-lhe o colchão de palha de milho, mexendo a palha e deixando-o tão fofo que a cama até parecia outra. Quando viu a cama assim tão bem feita, o pobre do Franco não a quis desfazer e dormiu no chão para que a cama já ficasse pronta para o outro dia.

Um dia aconteceu pegar fogo na casa do Franco e o pobre não tinha onde se agasalhar. Com pena dele, a avó acolheu-o no sobrado do palheiro que tinha ao pé de casa, no lado da porta da loja e ele ali dormiu por uns tempos. Mas o Franco que tinha pouco juízo, fazia barulho pela noite fora quando todos queriam dormir. Numa dessas ocasiões a avó abriu a janela e mandou-o calar-se dizendo-lhe que o avô que já tinha uma certa idade, precisava de dormir porque tinha de acordar cedo. O Franco prontamente respondeu que não tinha nada a ver se o avô precisava de dormir, que não tinha culpa de o avô se levantar bem cedo para ir tocar o sino da igreja,  e só parou de fazer barulho quando bem entendeu.

Sempre que as histórias do Franco eram tema de conversa, era impossível não darmos umas boas gargalhadas ouvindo as suas peripécias. Ao lembrar-me delas, imagino a mãe e a tia que nos transmitiram as suas lembranças, lá na Outra Dimensão a se rirem com vontade por não as termos esquecido. E com certeza hão-de enviar-me mais inspiração para me lembrar de outras histórias que todas juntas constituem a história da nossa vida.

 
 

domingo, 6 de novembro de 2016

Os medos de antigamente...


O MEDO DO VELHO

Não havia criança pequena que não tivesse medo do velho.

Por tudo e por nada que fizesse, logo lhe falavam do tal velho que no entanto nunca aparecia. Se a mandavam pôr-se quieta e não sossegava, se chorava sem parar porque lhe haviam ralhado, se não obedecia às ordens que lhe davam os mais velhos, lá vinha a terrível ameaça: “_ Olha que vem um velho e leva-te dentro da saca!...”

Assim acontecia com todos os pequenos, diariamente ouvíamos esta ameaça, por isso desde tenra idade aprendemos a sentir o medo e a temer o perigo, porque certamente não haveria coisa mais terrível para uma criança do que ser levada para um lugar desconhecido, longe da mãe, do pai e dos irmãos.

Mas aquele velho que realmente só existia nas palavras dos adultos como forma de ensinarem os mais pequenos a terem bons modos de conduta, existia concretamente, em carne e osso, na minha infantil realidade. Na minha inocência, o velho que me iria levar dentro da saca, para bem longe, era nem mais nem menos o Manuel dos Ramos, um pobre que costumava passar pela nossa casa a pedir esmola.

O Manuel dos Ramos vinha lá do cabo da Ribeira Grande, sempre descalço, com uma saca ao ombro e um bordão para o ajudar a deslocar-se porque as suas pernas meio torcidas, dificultavam-lhe o andar. Era mesmo pobrezinho mas não era muito velho, pelo contrário, devia ser ainda novo, porque talvez ainda não há duas décadas que terá falecido. Também não seria pessoa de fazer mal a quem quer que fosse, muito menos a crianças pequenas, mas era a minha imagem do tal velho e era ele o meu grande medo.

Quando via o Manuel dos Ramos a apontar ao Lombo do Cantaria e a descer pela Fontinha abaixo, já eu me escondia dentro de casa, com medo não me levasse. Escondia-me dentro da cozinha, punha-me atrás da porta e observava-o pela frincha do postigo. Via-o sentado no assento do nosso terreiro, de prato na mão ou em cima de uma banca, a comer o que a mãe lhe havia arranjado para que matasse a fome; a nossa casa era paragem obrigatória porque a mãe nunca o deixava ir de barriga vazia.

Junto com o medo que me assolava naquele momento, eu sentia uma enorme pena do Manuel dos Ramos, sobretudo pelos seus pés sempre descalços, pelo seu modo triste de responder às perguntas que a mãe lhe fazia e pelas suas pernas que ele nunca conseguia endireitar. Depois de satisfeito, via-o pegar na saca e no bordão, descer os nossos degraus e ir-se embora seguindo o caminho pela vizinhança abaixo. Sentia-me aliviada, mas aquela imagem não me saía do pensamento.

Ainda hoje a figura do Manuel dos Ramos surge por vezes na minha lembrança, quando penso nos meus medos de criança pequena ou na miséria e pobreza em que viviam algumas pessoas do meu tempo. Com o passar dos anos e à medida que fui crescendo, o medo do tal velho dos meus tempos de criança foi-se desvanecendo, mas quando oiço falar em pobreza, muitas vezes lembro-me dele porque aquela não era uma pobreza fingida, era mesmo verdadeira. A fingir só mesmo o velho que eu imaginava que me poderia levar embora para sempre.