segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Cantigas e brincadeiras da Festa

 

AS OITAVAS DA FESTA

Naquele tempo as oitavas da festa eram dias de folia e muita brincadeira.

Por serem dias santos era obrigatório ir à Missa mas depois havia muito tempo livre e ao fim da tarde o largo da ponte enchia-se de gente; homens e mulheres, rapazes e raparigas, grandes e pequenos brincavam e cantavam em animados convívios.


No assento encostado à venda do padrinho juntavam-se os homens e rapazes mais velhos, às vezes a jogar à bisca ou à milhada mas muitas vezes também ao jogo do farelo. Muitos metiam a cabeça no cocho (podia ser um casaco aberto que alguém segurava para tapar os olhos do sacrificado) e ali ficavam por um bom bocado com a palma da mão virada para cima, levando palmadas ora deste ora daquele, algumas tão fortes que só de ouvir o estalo doía, até acertarem naquele que lhes tinha dado a última palmada e saírem dali com as mãos a arder como brasa. Às vezes sempre havia alguma rapariga mais arrojada que entrava no jogo, mas eram poucas as que se atreviam porque as palmadas não eram nada suaves.


Um pouco mais abaixo juntavam-se as mulheres e raparigas com os mais pequenos em jogos e cantigas de roda.

Jogava-se ao jogo do lenço, ao jogo do anel e ao pisca-pisca ou jogo dos namorados: o jogo era feito aos pares e um sozinho no meio da roda piscava o olho a alguém e tentava roubá-lo ao outro para ser o seu par.  Assim as raparigas e rapazes mais velhos já iam deitando o olho e namorando aquele ou aquela que lhes interessava.

Em roda cantava-se:

Borboleta branca que se atira ao ar

A menina Ana não se quer casar

(…)

           Muito chorei eu no domingo à tarde

Aqui está meu lenço que fala a verdade

(…)

A Teresinha de Jesus

Deu uma queda foi ao chão

(…)

Ó amendoeira que é da tua rama

Por causa de ti tenho o meu amor em chama

(…)

Lá vai o paspalhão pra o meio

Para a roda não andar

(…).

As rodas enchiam o largo da ponte e as cantorias ouviam-se por todo o sítio. Eram momentos de alegria e são convívio em que se ocupava o tempo livre daqueles dias, porque nesse tempo não havia televisão e ainda estava longe de chegar aos nossos lados.

E era assim que a gente se divertia e passava os dias da Festa.

 

 

Funchal, 27-12-2021

 

 

  

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

É Natal, já cheira a pão fresco!...



O PÃO DA FESTA

O dia em que se amassava o pão da Festa era dia de azáfama e correria.

Na véspera era preciso pôr tudo pronto: a lenha de faia, fundamental para fazer o forno porque deixava o pão mais corado e bonito, e uns gravetos secos de pinheiro e umas pinhas ou um braçado de parreiras secas para o lume pegar melhor, e algumas também para arder depois na porta do forno e não deixar descair o calor enquanto o pão cozia lá dentro. 

As folhas de couve também ficavam melhor apanhadas de véspera porque assim já estavam meio murchas e mais fáceis de arranjar para colocar por baixo das rosquilhas, bem como umas folhas de bananeira que se ia buscar à Fonte de Baixo e que a mãe já cortava com a tesoura em bocados para colocar por baixo dos bolos doces ou bolos de noiva; as folhas de bananeira eram lisas, sem nervuras e deixavam a sola dos bolos mais lisinha. E não se podia esquecer de verificar se o cabo da pá estava em condições, arranjar o varredouro para varrer o forno e uma vara comprida também de faia para esbrasear, lavar o alguidar e a tendeira e às vezes a mãe já cozia a batata doce porque no outro dia podia não haver tempo. Era preciso ter estas coisas todas prontas antecipadamente para depois não atrapalhar a amassadura do pão.

A mãe levantava-se de madrugada para amassar os bolos doces porque demoravam mais tempo a levedar. Quando acordávamos sentíamos logo o cheiro a canela e limão que vinha da cozinha e se espalhava pela casa toda. Enquanto os bolos levedavam a mãe já fazia o fermento e arranjava as batatas para o pão.

Depois dos bolos cozidos e arranjados com um pouco de manteiga para ficarem lustrosos, começava-se então a amassadura do pão.


Toda esta azáfama era sempre docemente polvilhada com algumas cantigas de Natal, à mistura com histórias de outros Natais que a mãe sempre contava. Nestas histórias tinham lugar habitual os brindeiros e as laranjas que a avó dos Barros oferecia aos netos na primeira oitava, as cantigas e brincadeiras do tempo dos avós e dos tios das Fontes ou as antigas romarias da Noite de Natal que sempre nos encantavam.

Entre as cantigas apropriadas ao amassar do pão não podia faltar aquela que eu sempre achei engraçada e me fazia imaginar a avó Silvéria toda sorridente às voltas com uma amassadura de pão:

_ Minha mãe mandou-me à lenha

Trouxe lenha de folhado

Toda a noite queimou lenha

Com o dentinho arreganhado.

 

Minha mãe mandou-me à lenha

Trouxe lenha de giesta

Minha mãe ficou contente

Pra amassar o pão da Festa.

   Entre cantigas e um copo de vinho, (o jarro do vinho não podia faltar em cima da mesa quando se amassava) lá se ia tendendo o pão, esbraseando e varrendo o forno, para em seguida levar lá para dentro com a pá, os maios e as rosquilhas já lêvedos e colocados em cima da folha de couve, o que lhe conferia aquele sabor especial.

Porque era da Festa, nesta amassadura de pão havia sempre as rosquilhinhas e os brindeiros que a mãe tendia com toda a perfeição. O mais bonito dos brindeiros era sempre para a tia que mais do que ninguém valorizava estas tradições, e a mãe fazia-o mesmo com essa intenção.

E enquanto o pão cozia, já se ia preparando as pudineiras e mexendo o bolo preto que iria a cozer quando o calor do forno estivesse mais brando, depois de cozido todo o pão.

A lida só terminava depois de se limpar e arrumar a cozinha.

Ao fim do dia o cansaço já era muito, mas sempre bem compensado pelo cheirinho a pão fresco e a bolo preto cozido que nos fazia sentir verdadeiramente que logo seria o Dia de Natal.

São momentos e vivências que não se esquecem, lembranças muito estimadas que sempre farão parte da nossa Festa e do nosso Natal.

 

Funchal, 23-12-2021

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Espírito de Natal

ESPÍRITO DE NATAL

Começou a euforia do Natal.

Os espaços comerciais há muito que se mostram engalanados a preceito e é ver o povo de um lado para o outro, já às pressas como se não houvesse amanhã, como se o tempo fosse acabar. 

Não sei se será o espírito de Natal ou se é mesmo deixar-se seduzir pelas vistosas ofertas nas montras das lojas ou pelas montanhas de caixas de bombons e chocolates de várias qualidades empilhadas à entrada dos supermercados, ali colocadas quase de propósito para que os mais gulosos não lhes consigam resistir. Mas é certamente o modo pessoal como cada qual vive esta época e aquilo que valoriza e considera ser importante na sua vida.

        Ainda faltam quase duas semanas para o Dia de Natal mas eu não tenho por hábito entrar nesta euforia, gosto de entrar com calma nos preparativos, só depois de ter arrumado o meu trabalho docente.

Vou deixando a vida seguir o seu ritmo habitual até à semana da Festa e então aí deixo que o cheiro a Natal me envolva e me faça sentir o seu verdadeiro espírito.

Não obstante, há aquela inevitável nostalgia de Natal que sempre chega de mansinho e silenciosamente se vai instalando sem me pedir licença, e eu não consigo dizer-lhe que não. Então, pouco a pouco, ela vai abrindo aquelas gavetinhas da minha memória, as gavetinhas de lembranças que se abrem sempre por esta altura, como se me quisessem dizer que tal como o Menino Jesus deve sempre sair da sua caixinha pelo Natal, também elas não devem ficar fechadas, precisam sair para ocupar o lugar que lhes é devido no meu espírito do Natal.

E são muitas as lembranças que se entrelaçam em histórias verdadeiras de outros Natais, cantigas e brincadeiras de crianças, coros de anjos e romarias, risos e gargalhadas, o genuíno espírito do Natal que nos envolve desde pequenos e que até hoje continua bem vivo na nossa alma.

Porque o Natal também é feito de lembranças e de muita saudade.

 

  


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Sobre um Auto de Natal...

 

Auto de Natal, no edifício P3 da Escola dos Ilhéus (1996)


PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO 

Todos os anos, quando se começa a falar do Advento, leva-me o fio da lembrança para aquele Auto de Natal que inúmeras vezes levei à cena com os meus alunos quando era professora de Expressão Musical e Dramática. De tantos ensaios que fiz, o texto ficou-me gravado na memória e até hoje sei-o de cor.  

A peça começava com a entrada de um pastor que se mostrava muito surpreso por ver tantos meninos juntos e sem pasta, e desenrolava-se com um grupo de meninos a explicar o porquê de estarem ali todos juntos. A certa altura um dos meninos fala do Advento e o pastor muito admirado pergunta silabando:

_”O A-de-ven-to?!... Expliquem-me, não compreendo!...”

E os meninos continuam a sua explicação:

“_É que Jesus nosso Bem, nasceu como tu sabes, um dia em Belém; e todos os anos pelo Natal ele quer voltar a nascer!...”

E o diálogo continua até ao final com aquela frase: “…porque o Menino, rosa em botão, a todos bate no coração”.

Este Auto de Natal é muito simples mas também muito didáctico. Sempre achei muita graça àquela frase do pastor quando pede aos meninos que lhe expliquem o que é o Advento. A forma expressiva como colocava a questão deixava também os restantes alunos muito curiosos à espera da resposta. Através desta conversa entre o pastor e os meninos todos os alunos que assistiam à peça aprendiam um bocadinho o significado deste tempo do Advento como preparação para a vinda do Salvador.

E é por ser simples que este Auto de Natal me tocou para sempre o coração.


Funchal, 28-11-2021

sábado, 27 de março de 2021

História com pés de inhame

 O MELHOR É PARA O PAI

Durante muitos anos, desde o tempo da avó Serafina, a terra do inhame era mesmo ao pé de casa, separada da vinha apenas pelo corgo que descia da levada do Encontro. Estava ali mesmo à mão, para quando fosse preciso se cavar dois ou três pés para arranjar e pôr a cozer na panela do almoço.

Cozia-se inhame em qualquer dia do ano ou desde que houvesse, mas era obrigatório pela Semana Santa, no almoço da Sexta-feira da Paixão.

Neste tempo Pascal havia quem cozesse aquele inhame branco que crescia nos olheiros e dava uns pés bem grandes, mas esse demorava muito tempo a cozer; então a mãe cozia do que nós tínhamos, o inhame de sequeiro, assim chamado porque crescia em terra normal, sem precisar de muita água e cozia muito mais rápido do que o outro.

A mãe gostava de inhame e cozia-o junto com espigos de couve, batatas de arroba e carne de porco, ou com semilhas e bacalhau. Às vezes, arranjava duas ou três bolotas das mais pequenas e juntava-as à sopa de couve.

Não me lembro se todos em casa gostavam de inhame, mas eu gostava, principalmente quando era no cozido, embora não me agradasse muito quando entrava na sopa de couve. Sempre gostei dos pezinhos mais pequenos que me pareciam mais gostosos; não sei se esta preferência se devia às histórias que a mãe contava ou então porque gostava mesmo mais das bolotas pequenas.

A mãe tinha histórias para tudo, até para os dias em que ao almoço havia inhame cozido no meio das semilhas e batatas de arroba, na travessa em cima da mesa da cozinha.  Eu ouvia as histórias e associava-as sempre connosco, imaginando as cenas como se estivesse a fazer parte delas.

Contava a mãe (com o seu humor característico!!...), o episódio de uma certa família que um dia havia cozido uma panela de inhame para o almoço. Quando estavam a almoçar, e porque o maior deveria ser sempre para o pai que era o cabeça de casal, as filhas foram escolhendo para elas os pés de inhame mais pequenos e deixando os maiores para ele. “Este é para o pai- dizia uma; este é para o pai- dizia outra…” mas no final do almoço elas é que tinham comido o melhor, porque os pés de inhame maiores tinham ficado meio encruados e por isso não eram tão bons como os mais pequenos. E o remate desta história era que nem sempre o que é maior em tamanho é melhor em qualidade, mas o melhor deve ser sempre para o pai.

Esta é uma das muitas histórias da Teresinha das Fontes, a nossa mãe, que lá no céu há-de estar a rir-se, como também se ria quando nos contava estes episódios, ao ver que a sua memória (que tanto pedia a Deus para lhe conservar!!...) afinal não se perdeu; continua naqueles que com ela à volta da mesa da cozinha, entre um pé de inhame ou uma batata de arroba, também se riam e mesmo sem o saber guardavam na lembrança estas pequenas coisas que hoje dizem ser a sua saudade.

 

    


terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Entrudo de ontem, Entrudo de hoje


MALASSADAS E TRADIÇÕES 

O rodopio de hoje é apenas uma pequena amostra do dia de Entrudo de tempos passados, mas nela cabe tudo o que trouxemos connosco desse tempo distante em que o mais importante deste dia era a confecção das malassadas.

Nesta pequena amostra têm lugar as histórias que vivemos e aquelas que a mãe nos contava: entra o avô das Fontes com a sua caldinha de açúcar e limão para molhar as malassadas e os tios à volta da avó Silvéria tirando sorrateiramente as malassadas que a avó ia fritando; entra a avó Serafina, com aquele jeito só dela, a tender o pão para depois fazer os bolos na graxa; entra a mãe ao pé do lar, toda rosada pelo calor da frigideira ao lume, e nós todos à sua volta à espera que a tampa de vimes se enchesse com as malassadas que ia fritando.  

Enquanto amassamos as nossas malassadas deste dia de Entrudo, as lembranças disparam como relâmpagos e fazem-nos sorrir. Cada palavra ou frase que proferimos e cada gesto que fazemos é um raio de luz que a todo o momento ilumina com uma imensa claridade os cantinhos da nossa memória, onde guardámos sem mesmo o saber aquelas pequenas coisas que um dia haveriam de se juntar para dar forma à nossa saudade.

Soltam-se as nossas gargalhadas quando nos apercebemos de que as nossas palavras e os nossos gestos são quase uma réplica das palavras e gestos da mãe; que ficaram gravados no nosso modo de ser e de fazer, como um legado que nos tivesse deixado para dar continuidade pelos tempos fora.

Imagino que lá do Paraíso a mãe há-de estar a rir-se com o nosso jeito: mais um bocadinho de água e "- a mãe também fazia assim!!..."; mais um pouco de farinha e “- agora lembrei-me da mãe!...”; mais umas batidas e “- agora parecias a mãe!!!...”.

A mãe está sempre presente no nosso pensamento e nas nossas conversas enquanto eu e Teresa vamos fazendo as malassadas, como se precisássemos da sua aprovação para nos dizer que estamos a fazê-las como deve ser.  

E assim vamos continuando a tradição, seguindo os ensinamentos da nossa mãe e das nossas avós, lembrando delas com saudade e fazendo viver a sua memória.