domingo, 29 de janeiro de 2017

Um jardim florido


FLORES E MAIS FLORES

A nossa casa nunca teve um jardim bonito e organizado como outras casas tinham. Ainda em tempo da avó Serafina tínhamos uma parreira de uvas brancas que fazia sombra mesmo por cima do terreiro de pedra calçada. Encostada à casa tínhamos a latada de vinha que se estendia até lá adiante, à beira do corgo. Na beira da vinha tínhamos um grande pé de hastes de São José que dava flores brancas desde a Semana Santa até ao Espírito Santo e tínhamos também uma roseira brava que dava umas rosas cor-de-rosa, com muitas pétalas todas fechadinhas que parecia que nunca chegavam a abrir completamente.

Quando o pai reconstruiu a nossa casa, no ano de mil novecentos e setenta, construiu um canteiro, ao longo de toda a beira do terreiro, mesmo por cima do assento, e ali se plantava alguns gladíolos, uns cor-de-vinho, outros cor-de-rosa ou alaranjados.  Também se plantava na beira da vinha algumas flores, mais uns gladíolos, uns craveiros ou uns pés de junquilhos, mas quase sempre a sombra não deixava que florescessem muito.

Eu gostava de ver o jardim da prima, os canteiros divididos com várias espécies de flores, em que no Verão sobressaíam as purezas brancas e os não-me-deixes de várias cores; também gostava de ver o jardim da Paixão que dava muitos amores-perfeitos, roxos e amarelos, gerberas vermelhas e cor-de-rosa, cravos brancos e cor-de-rosa cujo perfume nos invadia quando lá passávamos a caminho da Fontinha ou do Lombo. Mas estes dois jardins apanhavam sol, não tinham vinha a fazer-lhes sombra, por isso ficavam sempre bonitos na Primavera e no Verão.

Eu via aqueles jardins e pensava que a nossa casa que era nova, ficaria ainda mais bonita se tivesse também um jardim bonito, então plantava flores na beira da nossa vinha, sempre à espera que florescessem e ficassem bonitas como as dos outros jardins. Plantava não-me-deixes, amores-perfeitos, galhinhos de cravos, mas as minhas plantações raramente chegavam a florescer. E não era só pela sombra da vinha, mas também porque eu não deixava que pegassem. Julgava eu que bastava um ou dois dias para que as plantas se fixassem à terra e começassem a crescer, então ia lá e puxava-as devagarinho a ver se já estavam pegadas (que inocência a minha!!...), mas realmente não podiam estar e por isso nunca chegavam a vingar. E desta maneira nunca cheguei a ter um jardim florido na beira da nossa vinha.
 
Jardim nunca tivemos, mas aquele pé de hastes de São José, que já lá estava desde o tempo da avó, continuou a dar flor ao longo dos anos, e dessas flores a mãe fazia o ramo que se colocava na mesa da sala, no dia da visita do Espírito Santo. E ainda lá continua, florindo a cada Primavera, as flores da nossa mãe, as hastes de São José.

 
   

sábado, 28 de janeiro de 2017

Alegria e boa disposição


ACREDITAR SEMPRE

Às vezes, basta um pequeno acontecimento, aparentemente sem importância, para nos levar a pensar em coisas sobre as quais não costumamos reflectir, tão embrenhados estamos na correria que é a nossa vida.

Vem este meu pensamento a propósito de um simples episódio, sucedido comigo esta tarde, enquanto fazia o pagamento de um livro na livraria Bertrand. No meio da conversa, perguntaram-me assim com um ar de admiração, como consigo estar sempre bem disposta e sendo professora. Tomei esta pergunta como um elogio, mas com algum espanto, olhei para a minha interlocutora sem resposta pronta, ao que ela reforçou a questão, acrescentando como era possível, que depois de passar um dia com vinte e tal alunos, ainda demonstre a tal boa disposição a que se referira anteriormente porque, segundo ela, não deveria ser nada fácil. Não lhe dei uma resposta exacta mas foi este o mote para o prolongamento da conversa, agora sobre escola, professores, alunos e pais.

Pelo caminho de regresso a casa, a pergunta continuou a saltitar no meu pensamento. Dou por mim a pensar que muito mal estaria eu, se os problemas inerentes à minha profissão me fizessem ser uma pessoa diferente do que realmente sou e me tirassem a alegria e a boa disposição. Apesar de alguma desilusão e desencanto, dos contratempos e decepções, é a alegria e a boa disposição muitas vezes proporcionadas pelo brilho nos olhos e os sorrisos dos meus alunos que me fazem cumprir a minha missão da melhor forma que sei e posso.

Agradeço a Deus por me dar a capacidade de sempre olhar o lado positivo, relativizando o negativo e nunca deixando de acreditar ter feito a escolha certa quando ainda bem pequena decidi ser professora.

 

Funchal, 27-01-2017   

 

 

 

 

domingo, 22 de janeiro de 2017

O que é a felicidade?...


 A FELICIDADE

Andava eu no antigo terceiro ano do liceu, no colégio Externato São Vicente.

A disciplina de Português era uma das minhas preferidas e eu correspondia com facilidade a qualquer trabalho que nas aulas fosse proposto; mas certo dia, senti-me um bocado preocupada porque não sabia realmente como sozinha iria resolver o trabalho de casa destinado para esse dia. O Padre Ernesto, meu professor de Português, com toda a sua filosofia, mandou-nos fazer uma composição literária cujo tema era  “A felicidade”.

Depois de dar voltas e voltas à minha cabeça, a pensar o que iria escrever sobre o tema, depois de algumas frases escritas e logo de seguida riscadas porque o que havia escrito não me satisfazia, manifestei a minha preocupação à mãe, a ver se me dava alguma ideia. A mãe, que sempre gostava de ajudar mas tinha mais do que fazer do que pôr-se a pensar no que seria a felicidade, aconselhou-me a que fosse pedir ajuda à minha madrinha Ângela que era professora e com certeza me iria dar algumas ideias.

E assim aconteceu. Com as sugestões que a madrinha me foi dando lá fiz a composição literária, tal como o Padre Ernesto me tinha mandado e assim me livrei de ter que passar pela vergonha de entrar na aula com o trabalho de casa por fazer.

Olhando para trás no tempo, para os meus treze anos que tinha nessa altura, dou por mim a pensar que realmente nessa época seriam bem poucas as pessoas que na verdade se preocupassem em saber o que seria a felicidade. A felicidade estava contida de forma tão natural na simplicidade da vida diária que nem sugeria que fosse questionada. E muito menos os pequenos como eu, alguma vez se perguntaram sobre o que seria a felicidade, daí também a minha dificuldade em escrever sobre o tema.
 
Em nenhum momento do meu tempo de pequena me veio ao pensamento essa questão de ter ou não ter felicidade. Para mim, todos da nossa família éramos felizes porque estávamos todos juntos, pai, mãe e irmãos; as preocupações faziam parte do mundo dos mais velhos e não do nosso que ainda éramos pequenos. E foi essa a maior felicidade da nossa vida, o estarmos todos juntos na nossa inocência e ingenuidade, sempre amparados pelos braços dos nossos pais.

 

Funchal, 22-01-2017

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Eu venho cantar os Reis


DIA DE REIS

             O Dia de Reis foi sempre um daqueles dias assinalados na nossa casa. No Dia de Reis nasceu Agostinho e por coincidência, alguns anos mais tarde, também Teresa foi baptizada neste dia. Assim sendo, e por ser dia de anos, sempre foi revestido por um certo ar de festa, não faltando um galo para o almoço e uma amassadura de pão.

            Nesse tempo o Dia de Reis era dia santo festejado e toda a gente ia à missa celebrar a Epifania. Era o final da Festa.

Na véspera, pela noite dentro, grupos de rapazes iam cantar os reis pelo sítio, às portas dos vizinhos, quando estes já estavam a dormir, e a nossa casa era ponto de paragem obrigatória.

A mãe levava muito a sério esta tradição do cantar dos reis; gostava de tudo o que envolvia música, cantigas e folia, e estimava de verdade quando os rapazes vinham cantar à nossa porta. Sabendo que era certa esta visita, antes de se ir deitar já deixava acesa a luz da rua e a mesa pronta à espera deles: o jarro do vinho, uma rosquilha de pão-de-casa, o bolo preto e as broas de mel.

Já muito tarde da noite éramos acordados por vozes a cantar no nosso terreiro:

- Abri as portas/ afastai os bancos/ que aqui vem três reises/ de cabelos brancos.

- Abri as portas/ afastai as mesas/ que aqui vem três reises/ de canelas tesas.

- E vós bem sabias/ e vós bem sabeis/ que é no dia d'hoje/que se canta os reis!

- Eu venho cantar os reis/ a casa desta vizinha/ não tem nada que me dê/ deixe-me ver a lapinha!

A mãe deixava-os terminar a cantiga e só então abria a porta e convidava-os a entrar. Com toda aquela cantoria, nós também acordávamos e mesmo cheios de sono corríamos para a cozinha, alvoroçados e cheios de curiosidade para ver quem tinha vindo cantar os Reis à nossa casa.

E lá ia rodando o jarro do vinho!...

Memórias de tempos idos, histórias da nossa vida!...