domingo, 31 de dezembro de 2017

À espera do Ano Novo!...


EM JEITO DE BALANÇO

Não tenho o hábito de fazer balanços de anos passados nem tão pouco de traçar objectivos para o novo ano que chega. O que lá vai, lá vai e o que no futuro vier havemos de receber com a disposição que na altura tivermos, acreditando sempre que tudo aquilo que a vida nos traz faz parte da nossa caminhada por este mundo.

Quando eu era pequena punha-me a imaginar que pessoa seria e como seria a minha vida quando chegasse o ano dois mil, mas a imaginação diluía-se no horizonte do meu pensamento e obviamente não conseguia ver o que sou hoje, passados já tantos anos desde a chegada do terceiro milénio. Planos não fazia, mas nas minhas diárias orações de criança e nas Avé-Marias que sempre rezava antes de adormecer pedia a Deus e a Nossa Senhora do Rosário que me ajudassem a ter boas notas e a ser boa aluna. Eram esses os meus grandes desejos do momento que com a graça de Deus nunca deixei de alcançar.

Hoje os meus desejos são naturalmente outros, mas não penso neles apenas na entrada do ano novo. Penso neles todos os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, continuo a pedir a Nossa Senhora do Rosário que me proteja na minha caminhada e não deixo de agradecer a Deus pela pessoa que hoje sou.

            O balanço da minha vida vou fazendo ao longo do ano e os objectivos vou delineando conforme o tempo e as circunstâncias, mas nunca deixando de acreditar na minha boa estrela.

Sempre com fé, vou deixando a vida fluir naturalmente, acreditando que o futuro ainda me reserva muitas coisas boas que na altura certa hão-de chegar!

E viva mais um Ano Novo!...

 


terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A primeira oitava do Natal

VISITA ÀS LAPINHAS

Depois de passarmos todo o Dia de Festa em casa, sem poder ir a nenhum lado, era um alívio e uma libertação quando chegava a primeira oitava. Assim já podíamos ir à ponte ou à casa da madrinha e brincar com os outros pequenos nossos vizinhos.

Naturalmente que cumpríamos o nosso dever de ir à missa neste dia, mas depois do almoço aproveitávamos para percorrer o sítio visitando as lapinhas da vizinhança. Juntávamo-nos com outros pequenos e lá íamos de casa em casa, observando atentamente os pormenores de todas as lapinhas que embora semelhantes no seu essencial eram sempre diferentes de casa para casa.

Havia os pinheiros enfeitados com balões de  soprar de várias cores, outros já tinham uma gambiarra com luzes coloridas que também variavam de uma para outra e as espiguilhas douradas e prateadas.

Os presépios também não eram todos iguais. Alguns eram feitos com papel pintado de castanho a simular as rochas onde pastavam ovelhinhas de vários tamanhos, mas outros eram mesmo construídos com rochas escuras, leves e favadas, cobertas com musgo verdinho, fetos e cabrinhas; também havia os presépios armados dentro de um toco de faia ou de loureiro, onde não faltavam os galhos de pereiro com barbas penduradas a compor o cenário.

 Aqui e acolá sobressaíam os caminhos de farelo por onde caminhavam os pastores a caminho da gruta, ribeiras de algodão branco contorcendo-se por entre os rochedos e um lago também de algodão branco onde nadavam minúsculos patinhos; empoleirado em cima da gruta, marcava presença o galo de crista vermelha e emproada. Todos estes pormenores eram objecto da nossa atenção, não deixando de olhar atentamente para o Menino Jesus que nós sempre comparávamos de lapinha para lapinha, para depois concluirmos qual deles era o mais bonito.

As vizinhas gostavam e recebiam com carinho todos os pequenos que neste dia chegavam à sua casa para visitar a lapinha e costumavam oferecer-nos alguma coisa. Ainda não podíamos beber licor mas havia as broas, uma fatia de bolo ou mesmo uma fatia de pão com manteiga que com boa vontade nós sempre aceitávamos.

E assim se passava a primeira oitava do Natal.





domingo, 24 de dezembro de 2017

O brindeiro da Festa


UM BRINDEIRO COM HISTÓRIA

Antigamente, quando se amassava o pão da Festa também se tendiam brindeiros para colocar na lapinha de escadinha e para as avós oferecerem aos netos mais pequenos.

A  nossa mãe contava que no seu tempo de pequena costumava ir aos Barros na primeira oitava, a casa da sua avó materna, a avó Antónia. A avó oferecia um brindeiro a cada neto e trazia também uma joeira cheia de laranjas e distribuía-as por todos eles.

A cada Natal que se passava na nossa casa, eu ouvia esta história contada pela mãe, enquanto se amassava o pão da Festa. Para nós, enquanto pequenos, a mãe costumava fazer uma rosquilhinha pequena para cada um, mas ainda me lembro de quando a mãe também me fazia uma malinha de pão, a parte de baixo enroladinha como um caracol e com uma asinha mais alta que dava para levar na mão.

Já depois de todos adultos e quando eu ajudava a mãe a amassar o pão da Festa, a mãe costumava fazer um brindeiro para oferecer à tia.

Na última vez que amassámos o pão da Festa na nossa casa, a mãe fez três brindeiros, um para a tia, um para mim e um para Teresa. Parece que ainda estou a ver a mãe com todo o cuidado a tender os brindeiros para que ficassem bem feitinhos.

            Depois disso nunca mais amassámos porque ao ver a tia doente e sem poder fazer sozinha a sua vida  a mãe perdeu a vontade e aos poucos o seu coração também se foi ressentindo.

Uns dois anos depois perdemos a mãe e logo de seguida perdemos também a tia. Foi um Natal muito triste, sem aqueles dois pilhares que sempre tinham sustentado a magia da nossa Festa.

Mas o brindeiro não se perdeu. Ficou tão bem cozidinho que nunca criou bolor e ainda hoje o coloco na minha lapinha.

Os últimos brindeiros feitos com amor e dedicação pelas sábias mãos da nossa mãe.


Funchal, 24-12-2017

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Natal, Natal...


LEMBRAR O NATAL

Esta é a semana que antecede o Natal, aqueles dias em que também nos acompanha uma certa nostalgia. As memórias fervilham sem parar e as saudades desfilam umas atrás das outras, fazendo saltar aqui e ali aquelas lágrimas teimosas que parecem estar guardadas especialmente para estas ocasiões.

Por mais que se tente desviar os pensamentos, lá vem um ou outro pormenor que nos transporta para outros Natais, para um daqueles momentos que nos tocou a alma; para o tempo em que a inocência nos fazia sentir o Natal daquele modo puro e simples, como simples e puro era o Menino Jesus deitado nas palhinhas e que todos os anos olhávamos embevecidos como se o víssemos pela primeira vez.

Mas que graça teria o Natal se não fossem as lembranças e as saudades?

Como poderíamos festejar esta quadra sem nos lembrarmos daqueles que outrora nos ensinaram a sentir o verdadeiro espírito do Natal?

É verdade que hoje celebramos o Natal do século vinte e um, vivido de um modo mais descontraído, festejado muito exteriormente e quase ao gosto de cada um. Mas também é verdade que a mais pura essência do Natal continua a atravessar os tempos, por isso continuamos a festejá-lo de acordo com os valores que nos foram transmitidos desde o tempo de crianças.

Então é natural, quase uma obrigação, que mesmo com saudade e nostalgia nos lembremos com gratidão daqueles que foram os pilares da nossa formação como pessoas e nos ensinaram realmente o verdadeiro sentido do Natal. 







Funchal, 18-12-2017 

sábado, 2 de dezembro de 2017

Era Dia de Natal!...


DIA DE FESTA

            O Dia de Natal era passado em família.

Logo de manhã, quando nos levantávamos, a mãe já tinha a mesa posta com uma toalha nova especial para este Dia de Festa. Era uma matina diferente da dos outros dias do ano: tinha o bolo preto, as broas de mel e os biscoitos de manteiga, o pão de rosquilha e os bolos de noiva, a manteiga no manteigueiro e o queijo redondo de casca cor-de-rosa; no armário não faltava a garrafa da aguardente de caldeira (para oferecer um groguezinho a alguma vizinha que chegasse!!!...) e o licor de baunilha que alguns dias antes a mãe havia feito. Era uma alegria chegar à cozinha e encontrar a mesa assim cheia de coisas boas. E às vezes a mãe ainda fazia a graça de nos dar a beber meio copinho de licor, só porque era dia de Festa.

O almoço também era diferente do que estávamos habituados.

Primeiro vinha a canja de galinha, com massa de cabelo ou de estrelinhas, e quase sempre trazia os ovinhos que estavam dentro da galinha; como todos nós os queríamos a mãe sabiamente dividia-os igualmente pelos nossos pratos e assim contentava a todos. Depois vinha a carne de galinha guisada com semilhas americanas (das mais miudinhas porque ficavam mais gostosas), a carne de vinha d’alhos com aquele molhinho no fundo da panela e o arroz branco com um pauzinho de canela que só a mãe sabia fazer.

O almoço decorria com calma, sem pressa porque o tempo assim o permitia, e ninguém podia levantar-se da mesa enquanto o pai e a mãe não acabassem de almoçar. Então vinha o momento de rezar pelos nossos avós e outros familiares que já haviam partido deste mundo e agradecer ao Menino Jesus por nos ter deparado a fartura que tínhamos à mesa neste Dia de Festa.

Depois do almoço passávamos o dia em casa. O Dia de Festa era dia de estar em família e mesmo não ficava bem visitar quem quer que fosse neste dia; nem à casa da madrinha podíamos ir. Os rapazes sempre conseguiam dar uma fugida até ao largo da ponte, onde junto com outros rapazes nossos vizinhos se entretinham a atirar bombas cujos estalos ouvíamos por todo o lado e até retiniam quando as arremessavam para dentro da levada, entre a nossa casa e a da vizinha do lado. Mas nós, as raparigas tínhamos mesmo que passar o dia todo em casa o que era muito aborrecido, ainda mais se estivesse um daqueles dias de Inverno. Entre uma fatia de bolo, umas broas ou um dentinho de queijo, lá se passava o tempo, ouvindo as histórias que a mãe contava de outros natais e sorrindo com as peripécias da mãe e dos tios quando eram pequenos em casa da avó Silvéria nas Fontes, até que o tempo escurecia e chegava a noite.

A noite e o tempo frio sugeriam que nos agasalhássemos ainda cedo dentro de casa; fechava-se a porta da cozinha e assim as conversas continuavam à volta da mesa, no calor da lareira, enquanto a mãe aquecia o jantar e fazia uma panela de chá preto (o verdadeiro chá do Ceilão que vinha naquela caixinha cor-de-rosa) que todos bebíamos logo depois do jantar, saboreando aquele travo especial e único. E como a noite era longa, ainda havia tempo de sobra para uma partida do jogo da bisca em que o pai comandava a equipa; como a bisca era de quatro, quem perdesse saía e entravam outros, mas o pai jogava sempre.

Assim se passava mais um Dia de Festa, com verdadeiro espírito de Natal!...

 

 




Funchal, 02-12-2017

domingo, 26 de novembro de 2017

Natal das crianças


AS CANTIGAS DO NATAL

As cantigas faziam parte da nossa vida diária, pois todos nós gostávamos de cantar, tínhamos bom ouvido e facilidade em aprender as cantigas que ouvíamos. Acho até que com certeza aprendemos a cantar ao mesmo tempo que aprendemos a falar, quando escutávamos a alegre e bonita voz da mãe a cantar enquanto cuidava de nós. Assim fomos crescendo e naturalmente manifestando aquele gosto de cantar que nos acompanha desde esse tempo da nossa infância.

Não havia dia em que não se cantasse e qualquer momento era apropriado. Enquanto mais pequenos, cantávamos à volta das nossas brincadeiras, debaixo da vinha; depois um pouco já maiores, cantávamos a arrumar a cozinha, a lavar a loiça ou a varrer o terreiro, a apastorar a casa ou a engomar a roupa no sábado à tarde. O repertório era muito variado, desde as cantigas que se ouvia na rádio, às músicas populares e tradicionais ou mesmo as cantigas que ouvíamos na igreja.

Com o aproximar do tempo da Festa, as cantigas eram naturalmente os cânticos da Missa do Parto, as cantigas das romarias de anos passados e os cânticos de Natal, os que cantávamos na Missa do Galo e alguns que tínhamos aprendido na escola.

Quando chegava o dia oito de Dezembro, o dia de Nossa Senhora da Conceição, em que a Festa já se fazia anunciar, começava uma ansiedade que nos dava a impressão de que nunca mais aquele dia chegava e começava também aquela incerteza misturada com um leve receio de ser ou não convidada para cantar no coro das pensadeiras que iam pensar o Menino Jesus na Noite de Natal.

Eu comecei bem pequena, talvez quando entrei na escola primária, nestas andanças de pensar o Menino na Noite de Natal. Passava os dias numa roda-viva, a ensaiar todas as tardes até saber bem as cantigas. E todos os anos se repetia a mesma rotina, o mesmo rodopio dos ensaios para aquela grande Noite. Era uma alegria responder ao anjo que estava no púlpito a anunciar o Nascimento.

Num desses anos, e como já soubesse de cor todas as cantigas, fui escolhida para ser o anjo e cantar no púlpito a anunciação. Disse imediatamente que não queria ser, porque só de imaginar toda aquela gente que enchia a igreja a olhar para mim, surgia dentro de mim um nervoso miudinho que me fazia rir e desatar às gargalhadas. Mas tanto insistiram que lá me convenceram, embora contra a minha vontade.
 
Quando cheguei a casa contei à mãe a novidade e assim que Pedro soube que eu seria o anjo disse logo à mãe que nem ia à missa porque já sabia que eu ia começar a rir no meio das cantigas.

Depois de vários ensaios e a uma semana da Noite de Natal, chegou a altura de ensaiar no púlpito da igreja, e então nesse dia aconteceu mesmo o que eu desde o início sempre temera: embora a igreja estivesse completamente vazia, o nervoso miudinho tomou conta de mim, deu-me vontade de rir e não fui capaz de cantar as cantigas seguidas do princípio ao fim. Então decidiram que outra pequena seria o anjo e eu continuaria a cantar no coro das pensadeiras, o que para mim foi alívio total; e assim continuei por mais alguns anos, a cantar e a pensar o Menino até me tornar rapariga.

Este foi um momento engraçado que me ficou para sempre na lembrança, junto com aqueles momentos em que cantávamos à volta da mãe, sentada a bordar à janela do nosso quarto, ou quando cantávamos as nossas cantigas de Natal à volta da nossa lapinha, cuja montagem era sempre de Pedro, o nosso irmão mais velho que no final quase sempre tocava gaita para animar as nossas cantorias.

Os anos passam e as canções de Natal fazem-me sempre vibrar e sentir muita daquela magia que antecedia a nossa Festa. A cada Natal que passa, continuo a ouvir lá dentro da minha alma as nossas cantigas, as nossas vozes e gargalhadas. E é tudo isso que me faz lembrar que é outra vez Natal!

 



 

 

sábado, 11 de novembro de 2017

São Martinho, castanhas e vinho


SÃO MARTINHO, DIA DE PROVAR O VINHO

 

Na nossa casa, no tempo das castanhas, havia castanhas assadas todos os dias: à noite era sempre uma festa...

No dia de São Martinho, o pai encetava o vinho novo. Tirava o vinho da pipa com uma mangueirinha usada só para aquele fim e passava para o jarro. Se o vinho estivesse claro já podia colocar a torneira na pipa, mas isso seria só daí a alguns dias, quando lhe desse jeito.

Outros tempos!... Coisas que deixam saudades!... 

domingo, 5 de novembro de 2017

À sombra da latada...


UVAS BRANCAS E UVAS AMERICANAS
Como a maioria das casas madeirenses, a nossa casa também tinha a sua latada. Era uma boa latada de vinha que se estendia desde o terreiro da cozinha até ao corgo, lá mais adiante. Como todas as casas, tinha também um terreiro de pedra calçada e um assento onde se sentavam a bordar ou a conversar as vizinhas que diariamente e por qualquer motivo subiam os degraus do nosso portal para virem à nossa casa.

Nos primeiros anos da minha meninice, ainda em tempo da avó Serafina, havia no terreiro uma parreira de uvas brancas, e mesmo na beira da vinha uma outra parreira de uvas americanas que faziam sombra e exalavam o seu perfume por todo o lado, fazendo despertar os nossos sentidos mal se abria a porta de casa. Estas duas parreiras ocupavam um lugar de destaque na latada porque eram diferentes das outras destinadas para fazer o vinho, e eram o orgulho do pai que lhes devotava o mais profundo cuidado para que nos desse os mais belos cachos de uvas que se pudesse saborear. Mas depois a casa foi toda reconstruída, o terreiro foi cimentado para ser mais fácil de varrer (quando era de pedra calçada tínhamos que varrer com uma vassoura de urze), e lá se foi a parreira de uvas brancas.    

A latada de vinha dava cor e alegria à nossa casa, tal e qual um adereço no colo de uma jovem e comprometida rapariga. Na Primavera e no Verão, o verde da folhagem e dos cachos de uvas, aquele verde próprio dos frutos que ainda estão a crescer, fazia realçar o vermelho alaranjado do novo telhado e o ainda fresco amarelo-claro da chaminé e das paredes da casa que cheirava a nova. Quem olhasse do Lombo do Cantaria ou desde a curva da Achada do Beirão apenas conseguia ver, no meio de todo aquele verde, o telhado da casa e logo atrás a cumeeira do palheiro de restolho que desde sempre ali estivera. Quando chegava o Outono, e assim que se fazia a vindima, as folhas tingiam-se com vários tons de vermelho e quase se confundiam com a cor do telhado; depois tombavam nas voltas e reviravoltas do vento sul que acompanhava as primeiras chuvas mal o Inverno se fazia anunciar, deixando nuas as parreiras, tal como a casa que igualmente se mostrava assim meio despida sem aquele seu precioso adereço.

A vinha era como uma extensão da nossa casa, o nosso grande quintal. O chão de terra batida era o palco dos nossos jogos e brincadeiras; à sua sombra a mãe sentava-se nas longas tardes de Verão, quando lhe sobrava algum tempo para gastar uma linha no bordado; e quando o pai chegava mais cedo do Lombo ou das Fajãs também aproveitava para ali descansar um bocado, sentado no degrau do palheiro, aproveitando para um dedo de prosa com um ou outro vizinho.

Para nós seria impensável imaginar a nossa casa sem a latada de vinha, pois fazia parte dela e também da nossa vida.

 
Funchal, 04-11-2017  

 

 

 

domingo, 29 de outubro de 2017

A mudança de hora


HORA DE INVERNO

Esta mudança de hora leva-me inevitavelmente para outros tempos passados em São Vicente.

Não me lembro exactamente em que altura começou esta moda de atrasar ou adiantar o relógio, mas lembro-me bem que nos primeiros tempos em que isso aconteceu havia sempre muita confusão, principalmente no domingo de manhã, por causa da hora da missa.

A hora da missa, a mesma para todos os domingos, era normalmente anunciada pelo senhor padre no domingo anterior: a missa da manhã às sete e meia e a missa do dia às dez e meia. Mas no domingo em que havia mudança de hora, havia sempre quem não percebesse se a missa seria à hora antiga ou se seria à nova hora. Sobretudo as pessoas idosas e outras menos esclarecidas faziam uma grande confusão e ficavam completamente baralhadas, o que habitualmente gerava algumas situações um pouco caricatas.

Quando o relógio atrasava uma hora, havia quem se levantasse cedo demais e ninguém chegava tarde à igreja; bem pelo contrário, sempre alguém chegava com uma hora de avanço e aí tinha tempo à vontade para rezar o terço duas ou três vezes, mais a Salvé-Rainha, as Avé-Marias e orações aos santos e às almas do Purgatório. Mas quando se adiantava a hora era mais complicado: havia sempre quem chegasse à igreja com uma hora de atraso, já a missa ia bem adiantada, o que causava um certo constrangimento porque ninguém gostava de chegar tarde à missa.

Era sobretudo na missa da manhã que aconteciam estas situações, a missa dos mais velhos e das mães de família que precisavam despachar-se cedo das suas obrigações religiosas para depois fazerem o almoço de domingo a tempo e horas.
 
À missa do dia iam os mais novos cujas obrigações familiares eram menos exigentes, não precisavam levantar-se tão cedo e a mudança de hora não tinha qualquer complicação.
Mas aquele domingo em que mudava a hora era sempre um domingo diferente para todos.

 




  

 

  

sábado, 2 de setembro de 2017

Calor de Setembro...


SETEMBRO

É mais um mês de Setembro que chega anunciando o Outono.

O tempo ainda é de calor mas as densas nuvens que frequentemente cobrem o azul do céu libertam aquela humidade irritante e incomodativa que sempre me causou algum desconforto. E é assim desde que me lembro.

Em Setembro, o declínio do sol sempre fez nascer dentro de mim um certo desencanto e até alguma nostalgia; digo mesmo que é o mês de que menos gosto, contrastando com Agosto, o meu preferido, em que o sol brilhando na sua máxima amplitude também me enche a alma de força e alegria.

Setembro faz-me lembrar o tempo em que logo pela manhã bem cedo tínhamos que ir às figueiras das Fontes apanhar os figos que amadureciam quase todos de uma vez, porque bastava um orvalhinho ou uma chuvinha miúda para logo ficarem cheios de bicho e já não se poderem comer.

Era a altura de tirar a folha ao feijão para deixá-lo secar, tarefa que o calor e a humidade tornavam aborrecida porque no meio das varas do feijão as folhas pegavam-se à nossa roupa e às vezes até ao cabelo. Chegávamos a casa todos pegajosos, ainda mais quando vínhamos pela levada do Encontro em que a erva-rija que abundantemente crescia nas beiras das fazendas nos pincelava com melique, e então ficávamos mesmo pegajosos dos pés à cabeça.

Em Setembro chegava o tempo de apanhar as uvas e fazer o vinho. Mesmo sendo uma tarefa leve e até divertida, nem sempre era agradável andar debaixo da vinha com o tempo quente e húmido desta época que só atraía vespas à volta dos cachos de uvas. Ainda mais para os pequenos que embora fosse grande a sua vontade, não tinham direito a um podão para podarem os cachos de uvas e só lhes cabia apanharem os bagos que caíam ao chão.

O mês de Setembro continua húmido e cheio de calor como naquele tempo. Volto a sentir a minha pele quente e pegajosa como se andasse debaixo da vinha, no meio das varas do feijão ou com a erva-rija a me pegar nos braços e nas pernas; o tom dourado do sol sugere-me sempre o mesmo desencanto e nostalgia.

O sentimento mantém-se e ainda não aprendi a gostar do mês de Setembro.  

 

Funchal, 02-09-2017

 

 

 

 

 










 

 

 

 

 

domingo, 6 de agosto de 2017

Da Venezuela


CARTA DE CHAMADA

No tempo em que eu era pequena, havia famílias inteiras que embarcavam para a Venezuela. Primeiro ia o marido para arranjar trabalho e daí a uns tempos já mandava a carta de chamada para a mulher e os filhos irem ter com ele. E lá iam todos, deixando a casa fechada e vazia.

Partiam à procura de uma vida melhor mas no seu pensamento levavam os familiares que cá deixavam e o calado desejo de um dia voltarem à sua terra. E porque era imenso esse desejo, sempre haveriam de voltar ao lugar onde nasceram para matarem as saudades dos familiares, sobretudo dos pais que muitas vezes de lágrimas nos olhos acalentavam a esperança de que também um dia os iriam abraçar.  

Era nos meses de Verão que chegavam os venezuelanos para visitarem a sua terra, trazendo na bagagem os sinais do seu bem-viver.

Os homens chegavam ostentando a sua grande e bem nutrida barriga ou o farto bigode com as pontas bem retorcidas; de camisa aberta, mostrando o peito cabeludo, saltava à vista o colar de ouro com o crucifixo; no pulso brilhava o dourado do relógio e da pulseira, tão grossa que não podia passar despercebida, tal como também não passava despercebido o vistoso anel de ouro no dedo anelar.

Na venda, enquanto falavam dos seus negócios, os venezuelanos  iam pagando rodadas de cerveja a quem estivesse e todos ouviam e ficavam a saber como era viver naquela terra onde se podia ter tudo o que se quisesse e em poucos anos se enriquecia.

Enquanto por cá permaneciam o tempo era de festa. Não deixavam passar o arraial de Nossa Senhora do Monte, o Bom Jesus de Ponta Delgada, a festa do Loreto; muitos tinham as suas promessas e queriam pagá-las. Mas a mais importante de todas era a sua festa, o arraial de Nossa Senhora do Rosário, a padroeira da sua igreja. Lá de anos a anos havia um que era festeiro e tomava à sua responsabilidade todas as despesas da festa, mas quando tal não acontecia sempre faziam questão de contribuir com a sua choruda oferta para ajudar a igreja que os viu nascer; havia também quem oferecesse a novena do sábado do Rosário e quem mandasse celebrar missa cantada em louvor de Nossa Senhora.

Alguns traziam a família toda, mulher e filhos já nascidos na Venezuela.

Para os pequenos como eu, os filhos dos venezuelanos pareciam vindos de um mundo diferente do nosso. Vestiam roupas diferentes de nós, não gostavam da nossa comida, ficavam com o corpo todo cheio de bexigas por causa do nosso clima e falavam uma linguagem que nós não percebíamos. Nós olhávamo-los com uma certa estranheza, tentando perceber o que diziam e questionando-nos por que razão os pais não lhes ensinavam a falar em português se assim tinham aprendido. E por entre o “mira para aqui, mira para ali” e o “pero, no es assí”, lá nos íamos entendendo no meio daquela embrulhada de palavras desconhecidas.

Todo o venezuelano que bem se prezasse, juntava a família e fazia uma grande festa no Chão dos Louros. Era uma festa de arromba, em que compravam um quarto de uma vaca, umas dúzias de grades de cerveja, e lá passavam juntos todo o dia, comendo e bebendo “até a lancha encostar”, até os homens ficarem “borrachos”.

Assim que se passava a Festa do Rosário, os embarcados iam outra vez embora. Por entre lágrimas e abraços de despedida regressavam à Venezuela, deixando na sua terra a saudade e levando consigo a esperança de um novo regresso.

 

Funchal, 05-08-2017   

  

domingo, 16 de julho de 2017

À sombra da ameixieira, no Quebra-Panelas...


SEMILHAS COM BACALHAU

Do São João ao Rosário não faltava trabalho.

Primeiro era a colheita das semilhas, logo depois plantar o feijão e daí a uma semana regar, meter as varas e enrolar o baraço (trabalho que só a mãe sabia fazer!!...); depois vinha a ceifa do trigo e na mesma sequência tirar os regos na terra fofa e poeirenta, plantar a rama das batatas e regar para baixar a poeira; daí a uns dias era preciso mondar o côco dentro dos regos, o que fazíamos em finais de tardes quentes que só apelavam à preguiça e à malandrice.

As tarefas sucediam-se e todos, do maior ao mais pequeno, tinham que ajudar na medida das suas possibilidades, porque o trabalho não podia ser deixado para o outro dia, tinha que ser feito e não havia mais conversa; era preciso aproveitar o bom tempo que o Verão proporcionava.

Numa destas ocasiões em que o pai andava a cavar as semilhas na nossa terra do Quebra-Panelas, coube-me a mim fazer o almoço, o que acontecia algumas vezes, embora tivesse apenas doze ou treze anos. O almoço seria semilhas descascadas com bacalhau, tal como a mãe já me tinha destinado, antes de ir embora para as Fajãs ajudar o pai a abreviar o trabalho, enquanto não vinha a força do calor. E assim foi: fiz tudo direitinho como a mãe me tinha mandado; sem perder tempo, cozi o almoço e depois de pronto arrumei-o devidamente no cesto de asa e levei-o para as Fajãs.

Sentámo-nos para almoçar à sombra da ameixieira, a toalha estendida em cima da erva seca e nós todos à volta, tal e qual um verdadeiro piquenique.

Mal tínhamos começado a degustar o banquete, a mãe constatou que as semilhas estavam pouco gostosas e perguntou-me se me tinha esquecido de lhes deitar o sal. Eu, já um pouco receosa que o pai também fosse reclamar, respondi que achava que não era preciso deitar mais sal, porque o bacalhau já era salgado e fora cozido juntamente com as semilhas. A mãe continuou dizendo-me que o sal do bacalhau não era suficiente e deveria ter acrescentado mais algum.
 
O pai, que ainda não se havia manifestado sobre o assunto, afinal veio em minha defesa e respondeu à mãe que comesse assim e se contentasse, porque para a minha idade já muito eu tinha feito.

Assim continuámos o nosso almoço; mesmo com pouco sal ninguém mais reclamou e toda a gente encheu a barriga de semilhas com bacalhau.

Mas na minha lembrança continua presente aquele almoço à sombra da ameixieira, na nossa terra do Quebra-Panelas.

 

Funchal, 16-07-2017

 

sábado, 24 de junho de 2017

Vai passar a procissão...


A FESTA DO SENHOR

A Festa do Senhor era a primeira festa do Verão, pois costumava realizar-se logo no início do mês de Julho.

Não era um arraial, nem tinha comparação com a festa do Rosário; era uma festa pequena, feita com os donativos do povo da paróquia, mas havia fogo-de-artifício e banda de música e todos se empenhavam para que fosse uma festa bonita.

No meu tempo de pequena, a procissão com o Santíssimo Sacramento subia o caminho da Vargem, desde a igreja até ao largo da ponte. Ali instalava-se um altar que ficava encaixado na parte mais estreita do caminho, entre o portal da casa do padrinho, o senhor Faria, e o muro do lado da ribeira.

Pouco me lembro da celebração propriamente dita porque seria ainda bem pequena, com certeza ainda não andava na catequese nem compreendia o momento em si. Mas tenho bem nítida na minha memória toda a azáfama e preparação do solene acontecimento.

Ainda consigo ver as mulheres e raparigas a fazerem o tapete de flores da ponte até à Rochinha; no meio delas a Teresinha Hilária a destinar por um lado e por outro, distribuindo a esta e àquela os vários modelos de flores desenhadas em folhas de papel vegetal e a dar-lhes todas as indicações de como deveriam proceder.

 O altar ficava bonito depois de pronto: o retábulo brilhava com a nossa manta vermelha que o pai tinha trazido do Curaçau, e era sempre utilizada nesta ocasião; aos lados, vasos de avenca e fetos de metro compunham a decoração em que sobressaía a branca e alva toalha bordada com linha azulada a caseado e bastidas, sobre a qual emergiam, muito solenes e elegantes com as velas acesas, os dois grandes castiçais de prata.

As janelas das casas também se engalanavam para a cerimónia: nas janelas da casa da madrinha ondulavam penduradas as mantas e colchas bonitas e nas janelas da casa do Viveiros, cheirando a naftalina, as nossas mantas, a azul e a de anjos, também esperavam com toda a devoção a chegada do Santíssimo Sacramento.

O largo da ponte ficava cheio de gente para assistir à solenidade, e em todas as almas penetrava o cheiro a incenso que se espalhava por todo o lado.
Ainda bem pequena, muito pouco eu conseguia ver do que se passava à frente do altar; por muito que me esticasse e me pusesse em pontas de pés, o meu olhar só alcançava o pálio dourado por cima das cabeças da grande multidão que ocupava de forma pouco habitual aquele familiar espaço onde durante os restantes dias do ano havia sempre à vontade lugar para grandes e pequenos.

Assim me ficou na lembrança a Festa do Senhor do meu tempo de criança.

 

 

sábado, 10 de junho de 2017

A água do arroz...


O ARROZ BEM LAVADO

À casa da madrinha nós íamos quase todos os dias, ou porque a mãe lá nos mandava dar um recado e fazer qualquer outra coisa ou mesmo só pela visita.

Eu gostava de ir a casa da madrinha para ler os jornais e as revistas; sentava-me na cadeira de vimes com uma fronha enramada de cores garridas, em frente à janela da cozinha, e ali passava um bocado do meu tempo a divagar pelo mundo das histórias e das letras. Às vezes ajudava em pequenas tarefas, como lavar a loiça ou enxugá-la e arrumá-la na mesa vermelha; outras vezes, enquanto a madrinha preparava o almoço íamos conversando sobre acontecimentos do dia-a-dia. No meio destas conversas, muitas vezes vinha a propósito histórias de outros tempos que a madrinha sempre contava com alguma graça; dessas histórias, muitas  ficaram-me na lembrança e basta às vezes um pequeno gesto ou uma palavra para que me saltem no fio da memória.

Certo dia, estava a madrinha na pia do terreiro da cozinha a lavar o arroz para cozer e eu ao seu lado ia observando atentamente o jeito como o fazia, enquanto falávamos de coisas banais. A dada altura, a madrinha perguntou-me em quantas águas se devia lavar o arroz. Prontamente respondi que deveria ser pelo menos em duas águas como a mãe já me tinha ensinado. Então a madrinha contou-me a história de uma senhora que pretendia contratar uma criada e a pergunta que fazia às raparigas que se lhe apresentavam era em quantas águas lavavam o arroz. Das várias candidatas ao serviço, umas respondiam que bastava uma água, outras que o faziam em duas ou três águas; finalmente uma delas respondeu que lavaria o arroz nas águas que fossem precisas, portanto foi essa que foi contratada. Aquela resposta da rapariga que a madrinha repetiu de uma forma um tanto enfática – “As águas que forem precisas, minha senhora!!...” - ficou-me para sempre guardada na memória.

Muitas vezes me pergunto o porquê de ter gravado na minha mente um episódio aparentemente sem importância alguma. Mas certamente teve para mim muito significado, porque ainda hoje, todas as vezes que estou a lavar o arroz para cozer, lembro-me da madrinha e desta história que me contou à volta da pia do terreiro da cozinha, no tempo em que eu era ainda uma criança e pouco sabia da vida.

 

Funchal, 10-06-2017

domingo, 14 de maio de 2017

Carta do Brasil...

O CARTEIRO

A chegada do carteiro era um acontecimento diário.

Toda a gente sabia que àquela hora, mais ou menos depois do almoço, ele subiria a Rochinha, trazendo na sua grande bolsa de couro castanho-claro, as notícias de familiares e amigos que se encontravam no outro lado do mundo.

Assim que se ouvia o toque da corneta a anunciar a sua chegada, ninguém perdia tempo: mulheres, raparigas e também os pequenos convergiam apressadamente para o largo da ponte, umas porque estavam mesmo à espera de carta, outras porque queriam comprar os selos para enviar outra carta, algumas também por simples curiosidade e muitas vezes com um certo desejo de bisbilhotice à mistura.

À roda do carteiro todos olhavam ansiosamente, com olhos de saudade e esperança, o grande maço de cartas ordenadamente arrumadas que ele trazia na mão. Todos sabiam que os envelopes de moldura azul e vermelha eram as cartas da Venezuela, e os de verde e amarelo, as cartas do Brasil. Os nomes iam saltando, um após outro, pela voz do carteiro, para alegria de uns e tristeza de outros, mas ninguém perdia a esperança de que uma cartinha no seu nome, num qualquer dia haveria de chegar.  

As cartas da Venezuela eram sempre em maior quantidade do que as cartas do Brasil. Os mais velhos diziam que o Brasil era a “Terra dos esquecidos” porque só lá de vez em quando é que alguém se lembrava de escrever. Mas a contrariar este ditado dos mais velhos, e embora de vez em quando também chegassem algumas das primas da Venezuela, a maior parte das cartas que a mãe recebia em seu nome, vinha dos seus irmãos do Brasil que escreviam com alguma frequência.

Quando no meio das cartas da Venezuela aparecia o verde e amarelo do Brasil, o mais certo é que fosse uma carta para a Teresinha das Fontes. E quando isso acontecia, a mãe ficava sempre feliz e todos nós sentíamos como nossa aquela felicidade.   

Era sempre uma enorme alegria e satisfação sentir que apesar do grande mar que nos separava, os tios lá estavam pensando em nós, como nós também nos lembrávamos deles, e continuávamos unidos pela mesma saudade.

 

Funchal, 14- 05-2017

 

 

 

quinta-feira, 6 de abril de 2017

No palco das cantigas


AS RÉCITAS

No Verão, as longas tardes de domingo sugeriam que se fizesse qualquer coisa diferente para passar o tempo. Então, por iniciativa de algumas raparigas mais habituadas e empenhadas nestas andanças, organizavam-se as récitas. Enquanto decorriam os ensaios, elaboração de adereços e demais preparativos, já o povo ia comentando que ia aparecer isto e aquilo, que fulana ou sicrana ia representar o tal papel, que ia haver uma cantiga assim e assim, até que finalmente chegava o dia da apresentação ao público.

As récitas eram apresentadas no palco do salão da igreja do Rosário, no sábado ou no domingo pela noitinha. O dia não era só de nervosismo e ansiedade para os participantes, como também de uma ávida e curiosa espera para aqueles que queriam saber que cenas seriam apresentadas no evento. Como todos queriam arranjar um lugar bem à frente no salão, muito antes da hora marcada já lá estava quase toda a gente, grandes e pequenos, à espera que a porta se abrisse e se desse início à representação, muitos com aquela imensa vontade de soltarem umas boas gargalhadas, porque sempre eram postos em cena alguns quadros engraçados e cheios de humor.

Desde pequena fui habituada a estas andanças das récitas.

A imagem mais antiga que tenho na lembrança é de ver, na sala de casa da prima, adereços já prontos e Teresinha e Noemi a se prepararem para a sua apresentação. Embora ainda não tivesse idade para participar sei, pelo que a mãe de vez em quando contava, que o nosso Pedro também participou tocando gaita, e ainda sei cantar uma das cantigas então apresentada: “-Que lindo Rosário, nome tão bonito, que lindos rapazes, sempre tenho dito, e as raparigas que tão belas são, são todas roseiras ainda em botão!”.

Depois de mais crescida, quando andava na escola primária, também participei em duas récitas.

Na primeira vez cantei e dancei a Yenka, uma dança espanhola. Era uma dança aos pares, em que cruzávamos as mãos dadas atrás das costas e abanávamos ora a perna direita, ora a perna esquerda, e depois dávamos três pulinhos para a frente e para trás. Não me lembro de quem foi o meu par, só me lembro da minha preocupação em não falhar na coreografia.

Na outra récita em que participei, representei as profissões e fui vestida de florista, de avental por cima da saia enramada, e com um cesto cheio de flores enfiado no braço. Cantei sozinha, a minha voz quase a tremer pelo nervoso miudinho, com medo não me desse vontade de rir no meio da cantiga; mas tal não aconteceu e cantei tudo direitinho, do princípio ao fim, o que para mim foi um grande alívio.

Estes simples momentos artísticos ficaram gravados na minha história; ao longo dos anos sempre me surgiam na lembrança, principalmente naquelas muitas ocasiões em que na situação de professora de Expressão Musical e Dramática ensaiava os meus alunos e os preparava para as mais variadas apresentações em palco; a sensação que eu tinha é que também eu era um deles.

São felizes lembranças do meu tempo de criança!...

 

Funchal, 06-04-2017  

sábado, 4 de março de 2017

Da primeira à quarta classe


A MINHA ESCOLA PRIMÁRIA

A Escola Feminina da Vargem, uma escola só de raparigas, foi a minha escola primária.

Era uma das três escolas que então existiam acima da igreja do Rosário; havia também a escola masculina e a escola mista. Funcionava no rés-do-chão da casa do senhor Manuel da Vicencinha, uma casa de construção ainda recente. Era uma sala grande, bem assoalhada, com duas portas altas pintadas de verde-escuro a ladearem uma larga janela, e um terreiro comprido, o nosso recreio, mesmo à beira da estrada.

À entrada da porta tínhamos logo à esquerda o quadro preto e mesmo ao lado a secretária da professora; no canto direito estava a caixa métrica e um armário castanho envidraçado onde a minha professora, a D. Fernandina Brazão guardava alguns livros, os processos de capa azul com as provas que fazíamos, os cadernos diários de capa vermelha, as revistas Fagulha e alguns materiais.

As carteiras, daquelas pesadas em cujos bancos cabíamos sentadas três alunas, ainda tinham os tinteiros brancos embora já não fossem utilizados porque escrevíamos a esferográfica e não a caneta de pena. Era uma sala sempre cheia, com muitas alunas, algumas já bem crescidas, que se distribuíam no mínimo por três classes do ensino primário.

Tenho recordações muito boas da minha escola. Lembro-me da facilidade com que aprendi a ler e do gosto com que aprendia tudo o que a professora me ensinava.

Olho para trás no tempo, para o ano de mil novecentos e sessenta e oito e vejo-me bem pequena, na primeira classe, ao lado da secretária a ler a lição ao pé da minha professora; num instante estou a fazer as primeiras contas de aritmética utilizando uns bonequinhos de plástico de várias cores que saem de uma caixa guardada no armário castanho envidraçado, e lá vêm os ditados que eu já sei de cor e escrevo de uma vez, ainda a professora não terminou de ditar; dou um saltinho até ao recreio e lá estou eu, a ler para um grupo de raparigas maiores que me rodeiam, encantadas com a facilidade com que ainda tão pequena já consigo dominar a leitura.  

Detenho por um momento o meu olhar, naquele degrau logo à entrada da porta, onde nos sentávamos todas apertadas, atentas ao trabalho que alguma de nós fazia no quadro. Lá estou eu sentada no meio, com a minha pedra apoiada nos joelhos, cheia de contas de dividir e de multiplicar, o lápis de pedra já meio pequeno porque se partiu ao cair no chão, a molhar uma ou outra vez o dedo na saliva para apagar alguma coisa em que me enganei.

Não há campainha mas chegou a hora do recreio, e como não há carros podemos brincar mesmo na estrada. Lá estamos nós em fila, de mãos dadas aos pares, a cantar: - “ O mar está bravo, as ondas a bater, o mar está bravo, meu amor vem ver!”E sempre de mãos dadas, lá vamos passando debaixo dos braços levantados dos outros pares, até sermos o primeiro par da fila; começamos lá em cima, quase ao pé da porta do senhor António Machado, e só paramos à porta do senhor Garcês, sempre numa grande cantoria.  

O tempo demora a passar mas já estou na quarta classe e este ano vou fazer exame. Agora tenho um livro de História de Portugal e outro de Ciências da Natureza. Começámos a aprender as províncias de Portugal e chegou o dia de ir ao mapa dizê-las e apontar onde ficam. Quando a professora nos pergunta se alguém quer ir ao mapa, apronto-me logo e lá vou toda contente. Já sei a cantiga de cor pelas muitas vezes que a ouvi nos anos anteriores mas afinal ainda não sei localizar no mapa as províncias e as capitais, uma pequena falha que em poucos dias será ultrapassada.

Feito o exame da quarta classe, juntamente com a alegria e o orgulho por ter ficado aprovada, veio aquela tristeza acompanhada já de saudade por ter de deixar a minha escola, onde passei quatro felizes anos da minha vida. E foi nestes quatro anos que dentro de mim tomou forma o meu grande desejo de me tornar professora.
 


       Funchal, 04-03-2017