terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Entrando no Advento...


TARDES DE DEZEMBRO

A bonita, quentinha e alegre manhã de sol deu lugar a uma tarde cinzenta, um pouco fria e tristonha. O azul do céu deixou-se esconder pelo cinza das nuvens e a tarde perdeu a cor. Só mesmo o cafezinho com pau de canela no café do outro lado da rua e a lapinha de escadinha já montada com peros e laranjas, coroada pelo Menino Jesus de pé e de vestido vermelho (nunca tinha visto um Menino Jesus vestido com esta cor!!!...) para virem dar algum brilho a esta tarde de Dezembro e fazer-me lembrar que já estamos no Advento, o tempo que precede o Natal, e chegou a altura de começar a prepará-lo!

Por falar em Advento surge-me na lembrança um calendário de janelinhas com desenhos para pintar que uma das várias catequistas que tive (não me lembro exactamente qual!...) me ofereceu nos meus primeiros anos de catequese. Começando no início de Dezembro teria de pintar uma janelinha em cada dia até à véspera de Natal, mas para isso teria de praticar uma boa acção, ou então fazer o sacrifício de fazer qualquer coisa que exigisse muito esforço da minha parte ou que não fosse lá muito do meu gosto e da minha vontade.

Eu até achava graça ao calendário e com todo o empenho e entusiasmo começava a pintar diariamente a respectiva janelinha, tendo o cuidado de corresponder ao que era exigido para esse efeito, sobretudo enquanto havia as lições de catequese, para poder mostrar à catequista o quanto me havia interessado pelo assunto e as boas acções que já praticara até então. Mas assim que em casa se aproximavam os preparativos para a Festa e começava a euforia com os ensaios das cantigas para pensar o Menino Jesus na Missa do Galo, esquecia-me do calendário e das janelinhas para pintar e nunca cheguei a pintá-las na totalidade. Já era véspera de Festa e ainda tinha várias janelinhas em branco. Isso não quer dizer que fosse por falta de boas acções mas porque simplesmente me esquecia de registá-las, o que significa que para mim a Festa era mais importante que o dito calendário. Mas nunca o esqueci e quando se fala em Advento vem-me sempre à lembrança.

Coisas simples de pequenos que ficam gravadas na memória!!…
 
 
Funchal, 04-12-2018  

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Castanhas e castanheiros


NO TEMPO DAS CASTANHAS

Era por esta altura, mais ou menos pelo São Martinho, que os ouriços começavam a abrir e deixavam cair as primeiras castanhas. Às vezes, quando menos esperávamos, o pai chegava a casa, metia a mão na algibeira e tirava uma meia dúzia de castanhas que tinha encontrado debaixo do castanheiro nas Fajãs. Os nossos olhos brilhavam porque já tínhamos saudades delas; então, descascávamo-las e rapávamo-las mesmo com os dentes, trincando-as assim mesmo cruas. E que bem nos sabiam estas primeiras castanhas!...

Nas nossas Fajãs tínhamos vários castanheiros. Alguns nasciam espontaneamente, ainda eram pequenos e só davam um ouriço aqui outro ali, mas havia uns maiores que se destacavam pelo seu porte e davam mesmo castanhas com alguma abundância.

Quase ao chegar ao palheiro de cima, tínhamos um imponente castanheiro, de tronco alto e muito direito que dava as maiores castanhas, mas viveu poucos anos, acabou por secar e o seu destino foi tornar-se em madeira; um pouco acima do palheiro de baixo tínhamos outro castanheiro grande que também costumava dar muitas castanhas e já há muito tempo deixou de existir. Mas o maior de todos era o nosso castanheiro grande que tem resistido aos anos e continua a dar castanhas, miúdas mas muito saborosas.

Segundo nos contava o pai, este castanheiro terá sido plantado pelo avô Manuel António e embora o pai fosse ainda bem pequeno lembrava-se perfeitamente de ver o avô plantá-lo. E o castanheiro grande ainda lá está imponente e majestoso, quase um centenário atravessando gerações, sempre rei e senhor das nossas Fajãs.

No tempo das castanhas, todos os dias de manhã íamos às Fajãs buscar as castanhas que tivessem caído durante a noite. E então se tivesse havido algum vento a colheita era bem mais recheada.

Todos os dias comíamos castanhas. Às vezes a mãe cozia-as para o almoço, para comermos junto com as semilhas; à noite havia magusto diariamente. Depois da ceia, arranjávamos as castanhas, o pai assava-as no lar e nós ficávamos ali à espera, sentados à volta da mesa. Depois de assadas começávamos a descascá-las e íamos escolhendo as melhores para o pai e para a mãe.

Enquanto descascávamos e nos deliciávamos com as castanhas assadas íamos ouvindo histórias, provérbios e ditados que o pai e a mãe costumavam contar. Muito nos divertíamos, rindo sempre com vontade quando a mãe, entre outras artices, dizia: “-Quem come castanhas com carepa, à noite toca rebeca!”. E nós, com muito cuidado lá íamos tirando toda a carepa às castanhas, porque era certo e sabido que durante a noite haveria não uma rebeca, mas uma verdadeira orquestra de rebecas.

Nem todos os anos eram anos de castanhas, mas quando as havia em abundância davam para nós, e a mãe ainda contemplava a vizinhança. Às vezes eram tantas que o pai fazia um caniço, um tabuleiro feito com canavieira da mais delgadinha, onde se colocava as castanhas a secar no fumeiro da cozinha. Quando estavam aveladas a carepa saía com mais facilidade e eram boas para comer mesmo cruas. Depois de secas tínhamos castanhas para trincar durante muito tempo, sempre à espera que voltasse o Outono e vestisse outra vez os nossos castanheiros de novos ouriços com castanhas.

Era uma alegria!...

 

 

  

 

 
 

domingo, 14 de outubro de 2018

Sabedoria popular


PREVISÃO DO TEMPO

As previsões do tempo não chegavam a todos ou então poucos se guiavam por elas. Avisos e alertas meteorológicos ainda não tinham entrado na moda; ciclones e furacões só aconteciam por longínquas paragens, lugares desconhecidos dos quais só sabiam o nome aqueles que tinham tido a sorte de ter andado na escola e aprendido um pouco de geografia, guardando na memória os nomes que tinham lido no planisfério. Mas o povo tinha a sua sabedoria, sabia ler os sinais que indicavam chuva, vento ou bom tempo, tudo em função dos trabalhos agrícolas, aproveitando as melhores condições climatéricas para semear, plantar ou colher “a novidade”.

Vargem de Cima 2019
O pai era um excelente conhecedor destas previsões do tempo. Logo na passagem do ano sabia ver em que lado tinha ficado o tempo, se a norte, se a sul, ou noutro ponto cardeal qualquer; com esse conhecimento já previa se o ano que se iniciava iria ser bom ou menos bom, se seria chuvoso ou não, e normalmente as suas previsões eram acertadas.

Nós acreditávamos e levávamos a sério este saber do pai. De modo algum, nos passava pela cabeça questionar, mas muitas vezes me perguntava como era que o pai sabia aquelas coisas e acertava sempre no tempo que iria fazer. E era mesmo assim que acontecia.

Quando o pai olhava para o Pico das Barbas de Bode e via o cume tapado com uma nuvem, logo dizia que vinha chuva. Às vezes dizia que o tempo se tinha metido lá em baixo no Calhau e que não tardava a chover. Mas quando dizia que o tempo estava na Bica da Cana, já se sabia que haveria de chover dias a fio.

Dia e noite a chuva caía com força e não dava tréguas, o tempo não clareava. De repente a ribeira vinha cheia, com a água quase a saltar por cima da ponte, com um enorme barulho que mesmo com as janelas fechadas ouvíamos na nossa casa. Olhávamos e víamos lá na serra a grande queda de água branca como algodão, e conseguíamos ver também a queda de água do Encontro e bem mais perto a queda de água do Poço da Carne, a transbordar por todo o lado. A ribeira enchia, levava consigo tudo o que encontrava nas suas margens e deixava tudo lavado e limpo.

Quando ouvíamos o pai dizer que o tempo estava de sul era certo e sabido que traria consigo chuva e vento forte.

O vento de sul não era para brincadeiras: zunia nos galhos dos pinheiros que até dava medo, arrancava as varas do feijão e levava pelo ar as telhas de canudo das casas mais antigas ou as folhas de zinco que tapavam os galinheiros; às vezes até as cumeeiras dos palheiros de palha iam pelo ar. Quase sempre faltava a luz elétrica mas era logo substituída pelo candeeiro a petróleo sempre pronto para estas ocasiões. E tinha mesmo muita graça cear à luz do candeeiro, enquanto nos ríamos divertidos com as sombras que fazíamos nas paredes da cozinha.

Era assim que acontecia no tempo em que não havia avisos meteorológicos nem tão pouco televisão onde pudéssemos ver as imagens de satélite com o movimento da chuva ou do vento. E quem, nesse tempo, iria supor ou imaginar que algum dia isso fosse possível?!...


Funchal, 14-10-2018

  

domingo, 7 de outubro de 2018

Manhã de Domingo do Rosário


MANHÃ DE DOMINGO DO ROSÁRIO

             É sempre uma manhã diferente esta manhã de Domingo do Rosário.

No meu tempo de pequena, mal nos levantávamos da cama, queríamos logo mostrar uns aos outros os “tertilhos” que na véspera tínhamos comprado na barraca de quinquilharias com os cinco escudos que a mãe ou a tia nos tinham dado para gastar na festa. Mostravam-se os anéis de dois mil e quinhentos com a pedra azul ou vermelha e os relógios com bracelete de plástico, comparavam-se as bolas de farelo sobre qual delas seria a mais bonita (às vezes, para nosso grande desgosto, o elástico rebentava mal começávamos a brincar com ela, e depois por mais que se quisesse dar um jeito já não havia remédio!..); também se apresentava a boneca pequenina com braços articulados presos por um elástico, com a qual nos iríamos entreter a fazer vestidos que quase nunca lhe serviam e ainda os reco-recos coloridos cujo som irritante nos ensurdeciam os ouvidos… Tudo coisas pequenas que se podiam comprar com os tais cinco escudos.

Actualmente, já bem adulta e a caminho da segunda juventude, continuo a sentir esta manhã de Domingo do Rosário de uma maneira diferente das outras manhãs de domingo.

Na minha cozinha, sentada a tomar o pequeno-almoço, passo em revista a noite deste sábado do Rosário e as emoções que ela me traz. Apesar de já um pouco diferente da noite do Rosário do meu tempo de pequena, coisas há que continuam semelhantes, pelo menos no modo como as sinto.

Agora sou eu que (tal como costumava fazer a mãe!...) vou ao bazar da igreja falar com as raparigas que lá estão a vender (raparigas já bem mais velhas do que eu!!!...) e aproveito para comprar uns bolos de noiva.

O vinho com laranjada numa das barracas tradicionais, aquelas onde se encontra a carne de vaca dependurada à espera que alguém a leve para uma espetada,  continua a fazer lembrar a festa e estava muito bom, fazia lembrar o nosso vinho de casa!

A tradição é para manter como igualmente se mantém o grande prazer de encontrar pessoas que só vemos mesmo nesta noite do Rosário. E é sempre com um misto de orgulho e muita saudade que ouvimos alguém falar da nossa mãe, reconhecendo a excelente pessoa que era.

“_ A sua mãe era uma senhora com uma grande educação!...”

 Ouvir estas palavras encheu-me a alma e fez-me dar graças a Deus por ter-me dado a minha mãe.

Mas a maior saudade veio numa simples fatia de bolo doce com manteiga. O bolo de noiva que comprei no bazar do Loural, amassado pela minha prima Alzira, cuja receita é a da nossa avó Serafina e é exactamente a mesma receita que a mãe usava quando tão primorosamente e com perfeição fazia os bolos de noiva na nossa casa. Uma fatia de bolo doce com manteiga e uma chávena de café, enquanto na rádio passava uns fados na incomparável voz da eterna Amália, tornou este momento particularmente nostálgico e não pude evitar que as lágrimas me saltassem dos olhos e por uns minutos me viessem fazer companhia.

E é isto a saudade, quando passados muitos anos a nossa alma continua a sentir a emoção dos momentos felizes e inesquecíveis em que outras almas a ajudaram a crescer!...

Felizes somos nós que temos para recordar estes momentos que nos fazem sentir saudade!...


Funchal, 07-10-2018

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Professora sempre!...


CENAS DA VIDA DE UMA PROFESSORA

A cena passa-se na baixa da cidade do Funchal, mais propriamente em frente à estátua de João Gonçalves Zarco. Ia eu a passar por ali quando oiço a voz de uma criança a perguntar:

- Pai, quem foi o João Gonçalves Zarco?

Olhei e ali mesmo ao meu lado ia um casal de Portugal Continental, já na casa dos quarenta anos, com o filho que deveria ter uns nove anos, o qual havia feito a dita pergunta.

Fiquei à espera de ouvir a resposta, mas nem o pai nem a mãe abriram a boca para responder à pergunta do filho. Então, eu que adoro História de Portugal e do mesmo modo adoro ensiná-la aos meus alunos, aproveitei e ali mesmo dei uma lição de História de Portugal ao filho e mais ainda aos pais.

Expliquei quem foi João Gonçalves Zarco e realcei por mais de uma vez, com todas as palavras, que todo o português que se preze deve saber este facto da História de Portugal, pois Porto Santo e Madeira foram as primeiras ilhas a serem descobertas pelos navegadores portugueses. O pequeno olhou para mim admirado e ainda me fez mais umas perguntas, mas eu acho que mais espantados estavam os pais ao admitirem a sua ignorância. No entanto, com toda a delicadeza, agradeceram a explicação.

Passada a cena, dei por mim a pensar como muita gente ignora factos importantes da nossa História, tão importantes para sabermos quem somos e de onde viemos mas sobretudo para termos conhecimento da nossa identidade como portugueses que somos.

Pensei também que só mesmo uma professora como eu, que a toda a hora está a ensinar, daria assim uma lição de História em plena cidade do Funchal, sem sequer ter sido solicitada.

Ensinar é um hábito que desenvolvemos e aprimoramos mas é um dom que já nasce connosco. Quem, como eu com orgulho, um dia vestiu o fato de professora, não o irá despir nunca mais.

Professora para toda a vida!...


Funchal, 13-07-2018

quinta-feira, 29 de março de 2018

Quinta-Feira Santa


VENEREMOS, ADOREMOS

A igreja não está cheia como noutros tempos em que os bancos sempre eram poucos para que todo o povo pudesse assistir sentado à cerimónia. Os novos são pouquíssimos, a maioria é gente de meia-idade; o coro, embora pequeno, lá vai conseguindo com a ajuda de algumas vozes daqui e dali que os cânticos se espalhem e se façam ouvir por todo o templo. Mas cheira a incenso e é Quinta-Feira Santa.

 A liturgia em tudo semelhante à de outros tempos, talvez seja um pouco mais leve e a cerimónia mais abreviada, mas o essencial permanece. A atmosfera que ali dentro se vive leva-me inevitavelmente para o meu tempo de criança e traz-me ao pensamento o exemplo daqueles que me ensinaram a viver a Semana Santa.

A leitura do Livro do Êxodo em que Deus diz a Moisés o modo como o povo hebreu, escravo no Egipto, deve proceder para celebrar a Páscoa, a sua passagem da escravidão para a liberdade, faz-me ouvir novamente a voz da mãe com toda a sua expressividade a contar aquele episódio, tal e qual uma verdadeira história. Uma imensurável saudade aperta-me o peito e quase me faz saltar as lágrimas, afinal ninguém como a mãe para contar as histórias da Bíblia e viver com tanto respeito e seriedade as cerimónias da Semana Santa.

Depois vem o Evangelho e a voz da mãe continua a fazer-se ouvir na minha lembrança, no momento do lava-pés, principalmente quando Simão Pedro se nega a que Jesus lhe lave os pés. Aqui a mãe dava o máximo da sua expressão e imprimia-lhe até uma certa graça, pelo que seria mesmo impossível não ter decorado a parte final (-Então lava não só os pés mas também a cabeça!..). A mãe tinha uma grande admiração por São Pedro e gostava muito de contar os episódios em que ele era interveniente.

E continuo a percorrer o fio da memória, já no final da cerimónia, em que me vejo ainda pequena, de joelhos como todo o povo, o cheiro do incenso por toda a igreja e eu a cantar aquele cântico que nunca esqueci, “Veneremos, adoremos…”.

Por mais do que um momento, no decorrer desta missa de Quinta-feira Santa, dou por mim a agradecer a Deus por me ter dado a minha mãe, o meu melhor exemplo de vida. A mãe que melhor do que ninguém, com grande mestria e inteligência (ou não tivesse sido catequista!…), me soube ensinar estas histórias e valores, os alicerces da pessoa que hoje sou e que hei-de levar comigo para o resto da minha vida. Esta é, sem dúvida, a melhor maneira que tenho de honrar a sua memória.


Funchal, 29-03-2018  

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Uma história de nomes


NOMES DE SANTOS

No tempo dos meus avós, quando nasciam os filhos, havia em muitas famílias o hábito de lhes dar o nome do santo do dia em que tinham nascido, ou de outro santo do qual os pais fossem devotos. Assim também sucedeu na família do nosso avô materno, Manuel Machete, o avô das Fontes.

            A mãe gostava muito de contar a história dos nomes dos seus irmãos, os nossos tios, e eu sempre me encantei com estas histórias.

O mais velho do casal era o tio António Cipriano, assim chamado por ter nascido no dia de São Cipriano; o tio João Ildefonso tinha o seu segundo nome em honra de Santo Ildefonso; o tio Agostinho Silvano também devia o seu nome a São Silvano; a tia Maria Segunda tinha o mesmo nome de uma tia, irmã da avó Silvéria e a nossa mãe, Teresa de Jesus, por ter nascido em Outubro, teve o seu nome associado a Santa Teresinha do Menino Jesus.

Quando nasceu o tio mais novo da casa, sucedeu uma história engraçada a propósito do seu nome. O tio Manuel, filho mais velho pelo lado paterno, mas criado desde pequenino pela avó Silvéria com todo o seu carinho de mãe, foi perguntar à avó qual o nome que iam dar ao menino. Como a resposta fosse que ainda tal não estava destinado, resolveu dar a sua opinião. Então lá foi dizendo que todos os outros irmãos já tinham nomes dos tios da família da avó dos Barros e que o tio Francisco do Canto da Ponte, irmão do avô, estava “reinando”, ou seja, aborrecido porque ainda não tinha nenhum com o nome dele.

E para satisfazer o desejo do tio Manuel, o nosso tio mais novo recebeu o nome do tio paterno e chamou-se Francisco André, de todos o nome mais bonito, embora os outros também fossem bonitos, como sempre com muito orgulho (e com razão!...) a mãe o referia. E foi realmente uma família de Machetes com nomes bonitos, compostos com o sobrenome “de Oliveira Rodrigues”, da qual também sinto muito orgulho.

Embora, com muita pena, não tenha chegado a conhecer pessoalmente todos os tios, é como se os tivesse conhecido, porque sempre estiveram presentes nas histórias que a mãe nos contava, mesmo que na realidade vivessem no outro lado do oceano, nessa terra imensa e encantada que é o Brasil da nossa saudade. Os seus nomes hão-de ser para sempre lembrados, não só porque fossem bonitos, mas porque são ramos da nossa história.


Funchal, 17-02-2018

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

As cantigas da rádio


O RÁDIO DE PILHAS

O rádio transístor de capa preta toda aos furinhos era de Pedro. Foi-lhe oferecido pela tia numa das suas frequentes demonstrações do carinho e estima que nutria pelo sobrinho mais velho. Tinha o seu lugar fixo em cima da mesa da cozinha, no lugar da cabeceira que ficava perto da janela e onde só Pedro e mais ninguém se sentava às refeições. O lugar da outra cabeceira era inquestionavelmente o lugar do pai.

O rádio de Pedro funcionava a pilhas, mas como não apanhava bem a frequência foi preciso arranjar-lhe uma antena, presa numa vara alta fora da janela, o fio enrolado no próprio aparelho e ligado na tomada da cozinha, tudo engenhocas dele que até deram bom resultado.

Este rádio fez parte da nossa vida de pequenos durante alguns anos e era através dele que ouvíamos as cantigas que estavam em voga nesse tempo.

Quando Pedro chegava a casa vindo do trabalho, a primeira coisa que fazia era ligar o rádio.

Durante a tarde, quando estávamos por casa, era logo sintonizado o Posto Emissor do Funchal (Aqui Funchal, Posto Emissor de Radiodifusão, CSB 91, Onda Média!...) para ouvirmos a Música Pedida. Havia cantigas que eram pedidas diariamente e nós já ficávamos à espera que elas surgissem para também as cantarmos em simultâneo, pois de tanto as escutarmos até já as sabíamos de cor. O mesmo acontecia com as publicidades que nós também achávamos graça e repetíamo-las muitas vezes nas nossas brincadeiras. Lembro-me sempre daquela publicidade do Império das Louças, na época de Natal e também aquela da agência de viagens que informava os passageiros da data de saída do barco com destino a Miami, mas antes parava em La Guaira, na Venezuela.

À noite já não havia música pedida mas havia um programa humorístico muito engraçado que nos fazia soltar gargalhadas com as peripécias de um tal “João do Cabeço”, cujas piadas seriam muitas vezes replicadas pela mãe por qualquer coisa que viesse a propósito.  

Mesmo depois de já estarmos deitados e de luzes apagadas, Pedro continuava com o rádio ligado, um pouco mais baixo para o pai e a mãe não ouvirem no quarto deles, mas eu ouvia muito bem porque o nosso quarto era mesmo ao lado. A essa hora ele ouvia as notícias na Emissora Nacional e o inesquecível “Quando o telefone toca” que também eu gostava muito de ouvir.

Este gosto de ouvir rádio não se perdeu com o tempo nem mesmo com as modernas tecnologias. No meu balcão da cozinha há um lugarzinho reservado para o meu rádio. Desde que esteja na cozinha tenho-o sempre ligado e não prescindo da sua companhia ao pequeno-almoço. E é sempre uma boa companhia!...

 



 

  

domingo, 28 de janeiro de 2018

Os pobres de hoje em dia...

PEDIR JÁ NÃO É VERGONHA
Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades, como bem dizia Luís de Camões.

Com a mudança dos tempos mudaram as prioridades na vida, os desejos e os objectivos também são diferentes, a honestidade e a vergonha são coisas do antigamente; o que interessa é o parecer ter igual aos outros, mesmo que para isso o esforço seja mínimo ou até nenhum.

A realidade é que há por aí pessoas tão habituadas a viver do “se me dão” que nem têm noção da figura ridícula que são capazes de fazer, apenas para conseguirem satisfazer um pequeno capricho seu.

Antigamente, quem pedia na rua ou à porta de alguém era mesmo por necessidade, por uma questão de sobrevivência, porque havia realmente casos de pobreza e miséria. Mas até neste aspecto os tempos mudaram e hoje mesmo tive oportunidade de comprovar aquilo que estou a dizer.

Ao início da tarde de hoje, estava eu no supermercado quando fui abordada por um rapaz de quinze ou dezasseis anos e já com barba que me pediu dinheiro porque tinha fome e ainda nem tinha almoçado. Olhei para ele, gorducho e bem nutrido mas não me pareceu com cara de quem passa fome. Incrédula e com ar interrogativo olhei-o bem e ele voltou a insistir que ainda não tinha almoçado. Incapaz de me conter retorqui-lhe:

- Ó rapaz! Com esse corpinho pensas que eu acredito em ti? Vai mas é trabalhar! Pega numa vassoura e começa a varrer porque o dinheiro não cai do céu!

Não sei se ficou envergonhado, mas deu meia volta e logo depois vi-o sair do supermercado.

Quando passei pela caixa comentei o sucedido com a funcionária e ela disse-me que deveria ter chamado o segurança porque ninguém pode pedir dinheiro dentro do supermercado.

Mas o mais interessante veio depois. Quando passei na zona da restauração dei de caras com ele, o ar mais descontraído deste mundo, sentado à mesa juntamente com outros companheiros, a desfrutar de um enorme gelado. Aproveitei para lhe dar uma lição dizendo-lhe que da próxima vez que for pedir dinheiro não o faça dentro do supermercado e que podia ter chamado o segurança. Ele baixou a cabeça e nem abriu a boca, porque percebeu que tinha sido apanhado.

Resumindo e concluindo: a vergonha é coisa que já não existe e até os pobres que hoje pedem na rua são diferentes dos de antigamente.



Funchal, 28-01-2018

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Sopa de couve


A CULPA FOI DO FEIJÃO SECO
            Enquanto faço o jantar vou-me lembrando da mãe. Naturalmente que por qualquer motivo e a qualquer hora do dia ou da noite me lembro dela, mas hoje lembrei-me sobretudo por causa do meu jantar que já saíu um bocado tarde.

Nos meus telefonemas diários que mais ou menos a esta hora costumava fazer para a mãe, entre outras coisas falávamos do jantar. Eu gostava de saber o que a mãe tinha feito para o jantar, se já tinha jantado e normalmente por esta hora a mãe já se tinha despachado. Às vezes era a mãe que telefonava para saber de nós e muitas vezes acontecia que o jantar ainda não estivesse pronto. Então a mãe logo dizia que o nosso jantar era como os dos Serradores.

Os Serradores eram uma família oriunda de Santo António do Funchal que tinha ido viver para São Vicente. Tinham hábitos alimentares diferentes das gentes de lá do sítio e pelo que a mãe dizia, quando já toda a vizinhança tinha ceado, na casa deles ainda tinham ao lume a panela do milho, por isso ceavam sempre tarde, quando o resto dos vizinhos já estavam amanhados para se deitarem.

Hoje o meu jantar foi mesmo como a ceia dos Serradores, mas a culpa foi do feijão seco que demorou a cozer. Uma sopinha de couve como a que a mãe fazia tem que levar feijão manteiga, à moda da nossa casa, senão perde a graça. E já está cozida mas tenho que deixá-la compor, para então saboreá-la pensando na mãe e nas histórias que sempre tinha para cada ocasião.

 

Funchal, 25-01-2018

 

 

sábado, 20 de janeiro de 2018

Sempre com Deus...


DEUS NA MINHA VIDA

Eu e Deus sempre convivemos em perfeita harmonia.

Conheci-O em tenra idade, quando com apenas duas semanas de vida fui baptizada e o seu Espírito entrou na minha alma.

À medida que fui crescendo, Deus nunca me faltou e sempre acompanhou todos os meus passos. Apesar de não O ver, sabia que estava sempre presente, pois uma das primeiras coisas que aprendi, desde que me conheço, foi que Deus está em toda a parte. Ensinaram-me, eu acreditei e continuei acreditando ao longo dos anos.

Não me lembro de alguma vez ter olhado para Deus como um Alguém castigador. Apesar de saber distinguir um simples pecado de um pecado mortal, mesmo sabendo na ponta da língua os sete pecados capitais, aprendi a olhar para Deus como aquele ser superior que está sempre ao nosso lado, ajudando nas coisas mais simples ou apoiando-nos nas decisões mais importantes que tenhamos de tomar.

Em momento algum me passou pelo pensamento que Deus não existisse, e assim fui convivendo com Ele no seio da família, na igreja ou na catequese.

Confesso que já depois de adulta tive uma fase em que nos desencontrámos por alguns tempos. Por vezes, novas pessoas que vamos conhecendo e o meio em que nos movemos quase nos desviam de amizades mais antigas. No auge da nossa juventude, não podemos ou não queremos destoar das ideias daqueles com quem diariamente convivemos e assim vamo-nos deixando levar pela mesma maré e pela mesma onda em que navegam o seu barco, já que também estamos dentro dele.

Eu e Deus andámos cada um para seu lado, como velhos amigos que a vida levou por diferentes caminhos, mas nunca deixaram de pensar um no outro; quando voltam a encontrar-se abraçam-se com emoção e reparam que aquele laço que desde sempre os uniu afinal não se rompeu, continua com o nó bem apertado apesar do desencontro.

Reencontrei Deus nos momentos mais tristes da minha vida, quando perdi aqueles que me eram mais queridos, naqueles momentos em que muitos se desiludem com Ele e duvidam da Sua existência. Nesses momentos em que a tristeza tomou conta da minha alma, nunca duvidei de que Deus estivesse ao meu lado. Foi acreditando nesta certeza que consegui vencer a tristeza e ultrapassar a dor e a saudade imensa que preenchiam os meus dias.

Eu e Deus voltámos a encontrar-nos e agora penso que não haverá mais nenhum desencontro. A maturidade permite-me afirmar que estarei sempre com Ele, como Ele sempre esteve ao meu lado. E também sei que continuaremos a conviver em perfeita harmonia.

 

Funchal, 20-01-2017   

sábado, 13 de janeiro de 2018

A moda do véu...


O MEU VÉU DE TULE

Aquele era o tempo em que as mulheres, quando iam à missa, não podiam entrar na igreja com a cabeça descoberta. Era obrigatório cobrir os cabelos com um véu ou com um lenço. O véu ou o lenço era um acessório que fazia parte da roupa da missa.

As raparigas solteiras cobriam a cabeça com o seu véu branco de renda bordada, já as mulheres casadas usavam-no em tom cru e às vezes cinza prateado, mas usavam-no preto se estivessem de luto e para acompanhar os enterros, bem como no Dia das Almas e na Missa da Paixão na Sexta-feira Santa.

Depois de uma certa idade, com a maturidade dos anos, as mulheres gostavam de ir à missa de lenço na cabeça com as pontas atadas debaixo do queixo, e se fosse mulher viúva o lenço era preto, como não poderia deixar de ser.

Ainda pequena também tive o meu véu. Foi o véu da minha Primeira Comunhão, que não era de coroa como algumas pequenas usavam, mas em tudo idêntico ao véu das mulheres mais velhas.

O meu véu era branco, de tule e com florinhas e lacinhos bordados em toda a volta. Quando ia à missa ao domingo levava-o sempre e isso fazia-me sentir grande e importante como as outras raparigas, mulheres já feitas.

Parece que ainda estou a ver-me na igreja, sentada no banco da frente, de véu branco na cabeça e de livro aberto na mão, o inesquecível livrinho de capa azul que o Padre Sousa comprou para os pequenos da catequese aprenderem as orações e acompanharem a missa adequadamente.

Não me lembro exactamente em que altura deixou de ser obrigatório cobrir a cabeça para assistir à missa, mas sei que aquele foi o único véu que tive.

Depois de um pouco mais crescida as raparigas já iam à missa “em cabelo”, embora algumas mulheres mais velhas continuassem a usar o véu ou o lenço. Assim acontecia com a mãe que sempre teve o seu véu, e embora só em determinados momentos o pusesse na cabeça, não dispensava um bonito lenço quando ia à missa. Quase sempre levava-o sobre os ombros e só o colocava na cabeça com as pontas atadas debaixo do queixo se houvesse necessidade de se proteger do frio, nas agrestes manhãs de inverno em que subir a Rochinha nos enregelava até as orelhas.

E a moda do véu foi e não voltou!...

 

Funchal, 13-01-2018