quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Ó meu Menino Jesus...


A NOSSA LAPINHA

A lapinha mais antiga de que tenho memória é a lapinha da avó Serafina. Ainda consigo vê-la em cima da cómoda, com um pano bordado e o Menino Jesus de pé ao centro. À sua volta, pêros, laranjas, o triguinho, os postais de Boas Festas que tinham chegado do Brasil e da Venezuela e as muitas estampinhas com imagens de santos a quem a avó dedicava a sua grande devoção.

Depois da partida da avó Serafina, passou a ser Pedro, o mais velho dos irmãos, o responsável pela nossa lapinha. Então, já não a fazia em cima da cómoda, como era costume da avó, mas em cima da mesinha da sala. Era um trabalho só dele, pois costumava fechar a porta da sala e não nos deixava entrar para não o atrapalharmos, mas quando finalmente a porta se abria, corríamos todos numa enorme algazarra, a ver como estava a nossa lapinha.
 
Num recanto, a mesa era colocada na diagonal e logo atrás o pinheiro, com a gambiarra, as bolas brilhantes e as espiguilhas prateadas. Na mesa, a toalha branca de crochet feita pela mãe; o Menino da avó continuava a estar presente, mas agora tínhamos um Menino Jesus nas palhinhas, oferecido pela tia, os pastores que a mãe tinha comprado, as ovelhinhas, o cavalinho cinzento de Clara e dois galos empoleirados num galho do pinheiro, mesmo por cima da gruta; não faltavam os pêros rosados e os de focinho de rato, as laranjas, o triguinho, algumas cabrinhas e os postais que tínhamos recebido.
 
Mas o que verdadeiramente nos fazia brilhar os olhos eram os nossos brinquedos, colocados no chão à volta da mesa: as bonecas Famosas, bonitas e vaidosas de cabelo comprido, ainda dentro das caixas, os carrinhos com faróis que abriam e fechavam as portas, os cavaleiros nos seus cavalinhos, as carrocinhas de folha, o carro grande dos bombeiros, vermelho e com as escadas brancas; tudo brinquedos que a tia nos oferecia mas não eram para estragar, por isso ficavam guardados naquela pequena mala, castanha e de cartão, que um dia o pai trouxe do Curaçau, e só de lá saíam quando se fazia a lapinha.

Quando a nossa euforia se acalmava, chegava o momento das cantigas ao Menino Jesus. Cada um cantava a sua cantiga como sabia, quase sempre a mãe ajudava-nos a cantar e às vezes, Pedro que tocava gaita muito bem, também ajudava à romaria, acompanhando com a gaita as nossas cantigas. Todos juntos à volta da lapinha, fazíamos a nossa festa.

São momentos felizes das nossas vidas que para sempre ficarão na lembrança, dos quais é impossível não sentir saudades e uma grande nostalgia, nesta época em que os sentimentos estão à flor da pele.

Saudades sentimos nós daqueles que outrora fizeram a nossa Festa e são agora as estrelas que iluminam a nossa lapinha.

 

Funchal, 22-12-2016   

domingo, 18 de dezembro de 2016

Sempre Natal...

A ESTRELA DO NATAL

            A mais importante figura do nosso Natal era o Menino Jesus, porque nesse tempo o Pai Natal ainda não tinha chegado à nossa casa e talvez nunca lá tenha chegado a entrar.

Tudo era feito em louvor do Menino Jesus e para tudo se pedia a Sua ajuda.

O pão da Festa era amassado em louvor do Deus Menino e a Ele se pedia que o fizesse crescer depois de amassado, tendido e posto a levedar, antes de ser levado para dentro do forno; as searinhas também eram em honra do Menino Jesus para que abençoasse as novidades e nos ajudasse a ter fartura de trigo no ano seguinte e o mesmo se dizia dos peros rosados ou os de focinho de rato e das laranjas que em Seu louvor se colocavam na lapinha.

Mas a estrela do nosso Natal era sem qualquer dúvida a nossa mãe, embora nós, ainda pequenos, não nos apercebêssemos disso.

A mãe vivia intensamente o Natal, valorizando todas as tradições a ele associadas, desde as Missas do Parto ao verdadeiro significado do Dia de Festa, passando pelas romarias e cânticos da Noite de Natal.

A partir do Advento, quando as noites já eram bem longas e o serão depois da ceia ainda dava para gastar umas linhas no bordado, a mãe ia sempre buscar histórias e cantigas da Festa do seu tempo de mocidade e nós, à sua roda, ouvíamos embevecidos, rindo e fazendo perguntas. Deliciávamo-nos com as peripécias da Festa em casa do avô das Fontes; imaginávamos aquela romaria da Noite de Natal em que um grupo de rapazes levou uma barquinha pela igreja adentro até ao altar, com um melrinho a esvoaçar à frente, amarrado por um fio; víamos a mãe jovem, de mão dada com a nossa prima Virgília, ainda criança, a cantar ao pé do Menino Jesus (A pastora pequenina, ainda não sabe cantar, foi pedir à sua tia, para lhe vir ajudar!…) e junto com a mãe cantávamos as cantigas do seu tempo que nos ia ensinando.

Desde sempre ouvimos a mãe dizer-nos que o Natal era a festa das crianças, porque o Menino Jesus nasceu e fez-se criança como nós, mas era sobretudo a Festa da Família, e por isso não poderíamos esquecer todos os nossos familiares que já haviam partido.

Assim aprendemos e assim continuamos a sentir o Natal, lembrando a Festa da nossa infância com muita saudade e nostalgia, mas agradecendo ao Deus Menino por nos ter dado como exemplo de vida, a nossa mãe.

 

     
 
 

 

sábado, 10 de dezembro de 2016

O sapatinho na lareira


À ESPERA DO MENINO JESUS

Como toda a criança pequena eu esperava ansiosa a chegada da Festa. Ao longo de todo o ano ia contando os meses, as semanas e os dias que faltavam para o dia vinte e cinco de Dezembro que parecia nunca mais chegar.

A Festa era o tempo da alegria e das cantigas ao Deus Menino, das corridas ao carteiro à espera dos postais do Brasil e da Venezuela, dos foguetes a estalar de madrugada a anunciar as Missas do Parto, do pão de rosquilha e dos bolos de noiva a cheirar dentro da cozinha, das laranjas e dos peros rosados para pôr na lapinha, dos estalos das bombas que os rapazes rebentavam no largo da ponte. Era a Festa do Menino Jesus que ia descer pela chaminé e deixar um presente no sapatinho que na Noite de Natal os mais pequenos colocavam na lareira.

Eu acreditava ser mesmo verdade que o Menino Jesus descia pela chaminé, mas sempre achei um pouco estranho que isso pudesse acontecer. Muitas vezes perguntei à mãe como era possível o Menino Jesus descer pela nossa chaminé sem magoar os seus delicados pezinhos descalços e sem sujar o seu vestidinho branco na ferrugem, embora a chaminé tivesse sido limpa. A mãe arranjava sempre uma explicação e lá me ia convencendo, até que um dia descobri a verdade.

Lembro-me bem que já andava na primeira classe. Curiosa como sempre fui, abri o vestuário da mãe porque achava que lá dentro havia alguma coisa escondida. Não foi preciso procurar muito e logo encontrei, lá no cantinho do vestuário, uma bonita pasta azul que só poderia ser para eu levar para a escola. Com certeza devo ter sentido o meu coração a bater acelerado perante aquela descoberta, mas não contei a ninguém o sucedido.

Quando na manhã do dia de Festa, fui à lareira e encontrei em cima do meu sapato a mesma pasta que eu já tinha visto, cheguei à conclusão que afinal o Menino Jesus não descia pela chaminé. Contei à mãe o que já sabia e não lhe dei descanso enquanto não me disse a verdade sobre quem me tinha trazido aquele presente. Então vim a saber que o meu Menino Jesus havia sido a minha madrinha que me tinha trazido do Funchal aquela bonita pasta para ser colocada no meu sapato na Noite de Natal.

A partir desse Natal, não foi mais preciso pôr o sapato na lareira porque já sabia que quem me trazia um presente era a tia e a madrinha, e como sempre dizia a mãe, com a ajuda do Menino Jesus.

 

Funchal, 09-12-2016    

    

domingo, 20 de novembro de 2016

A caminho da Festa!...


A MATANÇA DO PORCO

Na nossa casa, a matança do porco era um dos acontecimentos mais importantes e esperados de todo o ano.

O dia reservado para esse fim era por tradição o dezoito de Dezembro, uma semana exacta para o dia de Festa, mas os preparativos começavam muito antes. Logo que o feijão seco tinha sido apanhado, o pai já guardava o zelo no sobrado do palheiro para depois ser usado no lume que ia chamuscar o pêlo do porco. Também as salgas e as púcaras de barro para a carne de vinha d’alhos, a banha e os torresmos tinham que ser lavadas e arranjadas para estarem prontas nesse dia, para além de outros apetrechos necessários que o pai também arranjava, porque só ele mesmo é que sabia o que era preciso.

Na véspera, a mãe fazia uma amassadura de pão. O forno era aceso logo de manhã, com um molho de lenha de faia, trazida da serra mesmo para esse fim. Fazia-se mais do que uma fornada de rosquilhas e maios porque no dia da matança, vinha muita gente para ajudar e tinha que haver comida de fartura. Enquanto isso, o pai improvisava um lar na rua e já lhe colocava em cima um grande bidão que nós enchíamos de água para ser fervida e serviria para pelar o couro do porco.

O dia começava bem cedo, ainda de madrugada, quando o pai se levantava e acendia o lume para ferver a água do caldeiro e também a mãe se levantava e punha ao lume a panela do café. Ainda nem tinha bem amanhecido e já chegava o tio Manuel das Fontes. Sempre sorridente e com boa disposição como era próprio do seu feitio, sentava-se à mesa da cozinha e logo tomava o seu groguezinho, daquela aguardente de caldeira que sempre havia em casa e era imprescindível neste dia. Enquanto tomava o seu café ia conversando com a mãe e eu ainda na cama, entre um sono e outro, já ia ouvindo as suas alegres risadas.

Depois iam chegando os outros homens, o tio Sousa, o João Lúcio (que desde o tempo da avó Serafina costumava ajudar na nossa casa e sem ele não se fazia nada!...), e mais alguns que tinham sido chamados para ajudar. Destes, pouco se lhes ouvia a voz, aquela que sobressaía mesmo era a voz do tio Manuel, cujas gargalhadas ressoavam por toda a casa.


O dia era de muito trabalho para grandes e pequenos. Enquanto os homens arranjavam o porco, as mulheres na cozinha preparavam o sangue cozido e temperavam-no com pimenta, alho e salsa picada, azeite e vinagre. Logo seria degustado com pão de rosquilha, café, ou um copo de vinho a acompanhar. Depois fazia-se o almoço: semilhas americanas com casca e uma risca à volta que seriam acompanhadas pelas vísceras do porco, o fígado e os pulmões cortados em bocadinhos e arranjados na panela com cebola, tomate, alho e louro e um bom copo de vinho para engrossar o molho.

Depois de limpo e arranjado o porco era levado para a loja. Eram precisos vários homens para carregar o bicho às costas porque habitualmente era muito grande. O pai sempre teve aquela presunção de ter o porco mais gordo das redondezas e por isso era impossível ser carregado apenas por dois ou três homens. Era pendurado numa trave da loja, com a cabeça para baixo e como às vezes era muito grande o pai teve de escavar uma pequena cova no chão de terra batida da loja, para se lhe colocar o alguidar de barro por baixo do focinho. Em cima das patas dianteiras colocavam-lhe o véu, aquele arrendado de gordura que lhe cobria as tripas; no lombo, de cima a baixo, era feito um profundo golpe que deixava ver a largura da carne gorda.

Por toda a tarde chegavam à nossa casa, vizinhos e amigos para tomarem um copo e verem o porco pendurado na loja. Com os dedos das mãos juntos que metiam no golpe do lombo, os homens mediam a carne gorda, faziam estimativas e davam palpites sobre qual seria o real peso do bicho.

Depois de toda esta azáfama, o trabalho ainda não tinha terminado; faltava a lavagem das tripas, tarefa que normalmente cabia às raparigas e rapazes, à qual os mais pequenos também gostavam de dar a sua ajuda. As tripas eram lavadas na água corrente da ribeira e com a ajuda de uma cana delgadinha eram viradas do avesso. Depois, com um tubinho de baraço de abóbora, enchiam-se de ar as mais lisas formando várias argolas que eram postas a secar enfiadas num pau ou num bocado de canavieira e depois serviriam para fazer as nossas linguiças com a carne de vinha d'alhos. As tripas mais grossas, depois de bem preparadas seriam postas a curar no fumeiro, para depois se fazer com elas uma boa sopa de abóbora ou de agrião.


A festança só terminava já pela noite dentro depois de se ter feito a picada do porco, mas o trabalho não estava acabado, ainda muito havia por fazer.




sábado, 12 de novembro de 2016

Personagens de antigamente


PERSONAGENS REAIS

Foram várias as personagens interessantes que povoaram o universo da nossa infância. Algumas delas conhecemos realmente porque ainda viveram no nosso tempo, outras conhecemos só de nome pelas muitas vezes que surgiam nas histórias que a mãe nos contava.

Umas vezes era o Molicos Carvalhal, vizinho quase do pé da porta, que surgia do antigamente para ilustrar qualquer assunto que se estivesse a falar; outras vezes era a Pestaninha que vinda lá dos lados do Porto Moniz chegava com a sua voz resmungona e mesmo sem pedir licença também entrava na história; e não poderia faltar o Santo Antoninho que costumava vir sempre à festa do Rosário e se metia com as raparigas dirigindo-lhes galanteios que nenhuma delas apreciava. Mas o Franco era, sem qualquer dúvida, a personagem que mais vezes entrava nas histórias da mãe.

O Franco vivia sozinho numa simples e modesta casinha de palha, nas Fontes, perto da casa da nossa avó Silvéria. Segundo contava a mãe, era fraco do juízo e dependia da ajuda da vizinhança para sobreviver. O porto de abrigo do Franco era a casa da avó que com a sua caridade e generosidade muitas vezes lhe matava a fome, embora toda a vizinhança o ajudasse no que fosse preciso. E porque tanto a mãe como a tia sempre falavam dele, foram várias as histórias do Franco que ficaram na nossa memória.

Contava a mãe que na véspera da visita do Espírito Santo, as raparigas juntavam-se e arrumavam-lhe a casa de modo a ficar apresentável para a Divina Visita. Uma vez arranjaram-lhe o colchão de palha de milho, mexendo a palha e deixando-o tão fofo que a cama até parecia outra. Quando viu a cama assim tão bem feita, o pobre do Franco não a quis desfazer e dormiu no chão para que a cama já ficasse pronta para o outro dia.

Um dia aconteceu pegar fogo na casa do Franco e o pobre não tinha onde se agasalhar. Com pena dele, a avó acolheu-o no sobrado do palheiro que tinha ao pé de casa, no lado da porta da loja e ele ali dormiu por uns tempos. Mas o Franco que tinha pouco juízo, fazia barulho pela noite fora quando todos queriam dormir. Numa dessas ocasiões a avó abriu a janela e mandou-o calar-se dizendo-lhe que o avô que já tinha uma certa idade, precisava de dormir porque tinha de acordar cedo. O Franco prontamente respondeu que não tinha nada a ver se o avô precisava de dormir, que não tinha culpa de o avô se levantar bem cedo para ir tocar o sino da igreja,  e só parou de fazer barulho quando bem entendeu.

Sempre que as histórias do Franco eram tema de conversa, era impossível não darmos umas boas gargalhadas ouvindo as suas peripécias. Ao lembrar-me delas, imagino a mãe e a tia que nos transmitiram as suas lembranças, lá na Outra Dimensão a se rirem com vontade por não as termos esquecido. E com certeza hão-de enviar-me mais inspiração para me lembrar de outras histórias que todas juntas constituem a história da nossa vida.

 
 

domingo, 6 de novembro de 2016

Os medos de antigamente...


O MEDO DO VELHO

Não havia criança pequena que não tivesse medo do velho.

Por tudo e por nada que fizesse, logo lhe falavam do tal velho que no entanto nunca aparecia. Se a mandavam pôr-se quieta e não sossegava, se chorava sem parar porque lhe haviam ralhado, se não obedecia às ordens que lhe davam os mais velhos, lá vinha a terrível ameaça: “_ Olha que vem um velho e leva-te dentro da saca!...”

Assim acontecia com todos os pequenos, diariamente ouvíamos esta ameaça, por isso desde tenra idade aprendemos a sentir o medo e a temer o perigo, porque certamente não haveria coisa mais terrível para uma criança do que ser levada para um lugar desconhecido, longe da mãe, do pai e dos irmãos.

Mas aquele velho que realmente só existia nas palavras dos adultos como forma de ensinarem os mais pequenos a terem bons modos de conduta, existia concretamente, em carne e osso, na minha infantil realidade. Na minha inocência, o velho que me iria levar dentro da saca, para bem longe, era nem mais nem menos o Manuel dos Ramos, um pobre que costumava passar pela nossa casa a pedir esmola.

O Manuel dos Ramos vinha lá do cabo da Ribeira Grande, sempre descalço, com uma saca ao ombro e um bordão para o ajudar a deslocar-se porque as suas pernas meio torcidas, dificultavam-lhe o andar. Era mesmo pobrezinho mas não era muito velho, pelo contrário, devia ser ainda novo, porque talvez ainda não há duas décadas que terá falecido. Também não seria pessoa de fazer mal a quem quer que fosse, muito menos a crianças pequenas, mas era a minha imagem do tal velho e era ele o meu grande medo.

Quando via o Manuel dos Ramos a apontar ao Lombo do Cantaria e a descer pela Fontinha abaixo, já eu me escondia dentro de casa, com medo não me levasse. Escondia-me dentro da cozinha, punha-me atrás da porta e observava-o pela frincha do postigo. Via-o sentado no assento do nosso terreiro, de prato na mão ou em cima de uma banca, a comer o que a mãe lhe havia arranjado para que matasse a fome; a nossa casa era paragem obrigatória porque a mãe nunca o deixava ir de barriga vazia.

Junto com o medo que me assolava naquele momento, eu sentia uma enorme pena do Manuel dos Ramos, sobretudo pelos seus pés sempre descalços, pelo seu modo triste de responder às perguntas que a mãe lhe fazia e pelas suas pernas que ele nunca conseguia endireitar. Depois de satisfeito, via-o pegar na saca e no bordão, descer os nossos degraus e ir-se embora seguindo o caminho pela vizinhança abaixo. Sentia-me aliviada, mas aquela imagem não me saía do pensamento.

Ainda hoje a figura do Manuel dos Ramos surge por vezes na minha lembrança, quando penso nos meus medos de criança pequena ou na miséria e pobreza em que viviam algumas pessoas do meu tempo. Com o passar dos anos e à medida que fui crescendo, o medo do tal velho dos meus tempos de criança foi-se desvanecendo, mas quando oiço falar em pobreza, muitas vezes lembro-me dele porque aquela não era uma pobreza fingida, era mesmo verdadeira. A fingir só mesmo o velho que eu imaginava que me poderia levar embora para sempre.

 


 

domingo, 2 de outubro de 2016

Rosário 2016


SÁBADO DO ROSÁRIO (séc. XXI) 

Foi uma noite do Rosário bonita e o bom tempo veio torná-la ainda mais agradável.

A igreja toda engalanada em tons de branco e rosa e a banda de música a tocar no coreto; o adro, o largo e a ponte enfeitados com flores de variadas cores, qual tapete de riscas onde sobressaem o amarelo, o vermelho e o azul; as bandeiras amarradas aos mastros, as luzes acesas e as barracas de quinquilharias com toda a variedade de chapéus que saltam à vista; o povo pela ponte adentro e o reco-reco das castanholas misturados com as cantigas ao despique nos brincos que se fazem aqui e ali; o fumo das fogueiras e o cheiro a espetada no lado das barracas… Em quase tudo uma noite semelhante ao Rosário dos meus tempos de pequena.

No meio de toda esta atmosfera que me transporta para esse tempo em que a noite do Rosário era repleta de uma contagiante alegria, dentro de mim continua latente uma grande nostalgia e aquela pontinha de tristeza que bem lá do fundo da minha alma, teimosamente vem ao de cima, mas eu vou lá e escondo-a para não entristecer porque na noite do Rosário o que se quer é alegria. Só que agora é uma alegria diferente.

É uma alegria e satisfação encontrar e falar com pessoas que só vemos lá de tempos a tempos e sobretudo nestas ocasiões. É um misto de alegria, tristeza e muita saudade ouvir falar da nossa mãe a alguém que nos viu nascer e crescer.

E lá está a mãe presente nas palavras da Gertrudes, que eu já não via há uns bons tempos e com quem já tinha saudades de falar: “ - Ainda hoje falei da Teresinha das Fontes!...”; e eu já com as lágrimas nos olhos: “- Gertrudes não me faça chorar!...”

É impossível estar na Festa do Rosário sem pensar na mãe ou falar dela, por isso a sua presença ao nosso lado foi sempre uma constante, dando-nos ânimo para vivermos a festa com alegria e boa disposição, tal como ela também muito gostava. E é um orgulho muito grande sentir que aquelas pessoas que por ela sempre tiveram uma grande estima, tal como nós também sentem saudades. É sinal de que a mãe cumpriu bem a sua missão neste mundo.

 


 

domingo, 25 de setembro de 2016

À espera do arraial do Rosário


UM VESTIDO NOVO

Todas as mulheres e raparigas queriam ter um vestido novo para a Festa do Rosário. Então, logo depois do Bom Jesus da Ponta Delgada, as costureiras não tinham mãos a medir.

Pela manhã ou ao fim da tarde havia um vaivém, Caminho do Encontro acima, Caminho do Estreito abaixo, para casa da costureira, primeiro para tirar as medidas, depois pelo menos mais duas vezes para acertar o vestido e finalmente para levar o fecho, as molas ou os colchetes, as marcas ou os botões, tudo em segredo para que ninguém copiasse o modelo.

O vestido era estreado no Domingo do Rosário, o dia da missa solene e saída na procissão, com muitas promessas a serem cumpridas de círio aceso na mão; os olhares eram muitos, alguns até muito pouco discretos, e ao fim da tarde, quando a maior parte dos romeiros já se tinha ido embora para a sua freguesia e o adro da igreja já se encontrava mais à larga, muitas das conversas aos pares versavam sobre o vestido desta e daquela e qual deles seria o mais bonito.

Os padrões dos tecidos eram muito variados, alguns tinham vindo da Venezuela oferecidos por familiares, mas os modelos não diferiam assim tanto, porque a criatividade da costureira também tinha os seus limites; saia de pregas ou godés (água-dez, como se dizia!...), mais uma ou duas pregas aqui, outro macho acolá, manga simples ou franzida, gola redonda ou em bico, cabeção à sport, fecho atrás ou botões à frente, com ou sem algibeiras… Todos diferentes, mas sempre com algum pormenor semelhante porque a costureira também era a mesma.

Para compor a indumentária, não poderiam faltar os sapatos novos, comprados também em segredo na cidade, ali nas sapatarias da Rua dos Tanoeiros conhecida como a rua dos sapatos. Então dava-se a coincidência de surgirem na festa duas ou três raparigas com sapatos iguaizinhos, apesar de todo o segredo que envolveu a sua compra, o que era sempre motivo de alguma desilusão para aquelas que gostavam de um modelo exclusivo.

Na nossa casa, a mãe, eu e as minhas irmãs também tínhamos o nosso vestido novo para a Festa do Rosário. Lembro-me particularmente de um vestido que a mãe nos mandou fazer, quando éramos bem pequenas, ainda Teresa não tinha nascido.

A mãe veio à cidade, comprou popelina às florinhas, em tons suaves de rosa e azul e mandou fazer-nos na costureira, três vestidos iguais. De cintura descida como então se usava, franzido na cintura como a mãe sempre gostou, manga curta, cabeção redondo, uma palinha debruada com bordado suíço, abotoado atrás com botões e um palmo acima do joelho, porque nesse tempo a moda era a da minissaia. Estou a ver-nos as três com esse vestido e devo ter gostado tanto dele que me ficou na lembrança.

Mudam-se os tempos, e o que naquele tempo era de suprema importância é hoje apenas uma querida memória. A Festa do Rosário continua a estar intimamente ligada à vida de todos os que, tal como eu, ali nasceram e cresceram. É a nossa festa, o nosso arraial. Nossa Senhora do Rosário é a nossa padroeira a quem nunca deixaremos de manifestar a nossa imensa devoção, mas o vestido novo obrigatório para essa ocasião há muito tempo deixou de fazer sentido. O que não pode deixar de fazer sentido é ter fé e acreditar que Nossa Senhora do Rosário será sempre a nossa protectora!...

sábado, 17 de setembro de 2016

Rezas e benzeduras


DORES DE BARRIGA OU MAU-OLHADO

As rezas e as benzeduras faziam parte do dia-a-dia.

Quando alguém se sentia maldisposto, sem vontade de comer, com dores de cabeça ou com a cabeça estonteada recorria à curandeira que tinha rezas para todos os males: tanto podia ser uma camada de olhado, como um ar que tinha passado ou então o sol na cabeça que havia provocado aquele mal. Até se curava os animais que por vezes também eram alvo da inveja e do olho gordo de algum vizinho.

 Na nossa casa não era hábito a mãe levar-nos a curar do olhado, embora de vez em quando contasse aquele episódio de uma camada de olhado que alguém me deu quando eu ainda era criança de peito. Indo a mãe comigo ao colo a caminho das Fontes para visitar a avó Silvéria, uma vizinha dali perto olhou para mim e disse-lhe que tinha uma menina muito bonita, parecida com a avó Serafina. A mãe ficou contente com o elogio e ao chegar a casa contou o sucedido à avó Serafina, pensando que também ela haveria de ficar contente, mas tal não aconteceu. A avó respondeu que não lhe agradava nada gabas como aquela, ainda mais vindas daquela pessoa que ela conhecia muito bem. Olhado ou não, o certo é que no outro dia a menina só vomitava e não queria comer nada. E desde esse dia ficou decidido que quando a mãe precisasse de ir às Fontes a menina ficaria em casa com a avó para que não voltasse a suceder o mesmo.

Depois de todos um pouco já mais crescidos, quando nas nossas brincadeiras dávamos cabriolas em cima da cama ou virávamos o sino nas estacas da vinha, de vez em quando vinham as dores de barriga e o bucho virado. Então era mesmo a mãe que nos curava com uma massagem na barriga. Mandava-nos deitar em cima da cama e esticar as pernas; depois, com um bocadinho de banha de porco que tirava da púcara de barro lá nos ia massajando a barriga, as suas mãos escorregando de um lado e de outro deixando-nos a pele lustrosa e brilhante; dizia para ficarmos quietos e de boca fechada para ouvirmos a nossa barriga a roncar e realmente era assim que acontecia. Não sei com quem a mãe aprendeu a dar estas massagens, mas a verdade é que até alguns pequenos da vizinhança, quando estavam com o bucho enfustado, vinham à nossa casa para a mãe lhes passar a mão na barriga.

Eu não gostava nada destas massagens e o que me valia é que muito raramente me dava dores de barriga. Quando isso acontecia lembrava-me da Teresinha Batata, uma curandeira de lá de baixo das Feiteiras que costumava vir a casa da prima. Alta e esguia, de pele morena e toda vestida de preto porque com certeza seria viúva, só de olhar para aquela mulher eu já ficava cheia de medo. As suas mãos escuras, magras e de dedos compridos provocavam-me uma angústia só de imaginá-las a escorregar na minha barriga. Por isso, assim que eu a via chegar a casa da prima, fugia para casa com medo que também me viesse curar, e só voltava depois de ela se ter ido embora.

Para além desta muito remota lembrança, quando já era um pouco maior, às vezes também ia acompanhar alguma vizinha a casa da mulher do Gibinha que sabia curar de olhado. Em silêncio eu observava atentamente e ia ouvindo toda aquela reza que ela dizia enquanto ia fazendo cruzes com um galhinho de alecrim. Duas palavras me ficaram na lembrança - a postura e a formosura - que alguém podia invejar, e o modo como ela arrematava a sua reza, ao qual eu achava muita graça: - Este mal, deste corpo seja tirado, àquele mar seja deitado. O mar é poderoso, pode com o bem e com o mal. Fora mal!

 E porque se acreditava que estas rezas faziam bem, ao fim dos dias certos para essas benzeduras, aquele que se ia curar sentia-se logo melhor, porque o mal já lhe havia sido tirado.

Mas era preciso acreditar!...

 


 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Dia de anos é dia de festa...


DIA DE ANOS

Todos os dias de anos eram sempre lembrados e festejados, pois a mãe não deixava passar nenhum em branco.

Num tempo em que não era hábito receber prendas de aniversário, já nos sentíamos muito felizes quando pela manhã a mãe anunciava que ia arranjar um galo para o almoço porque um de nós fazia anos. Quando dava jeito, já na véspera a mãe fazia uma amassadura de pão, para termos umas rosquilhas de pão fresco nesse dia; assim já podíamos fazer umas empadas com carne de galinha, o que nos sabia sempre muito bem. Alguns de nós tínhamos o nosso dia de anos em datas assinaladas e festejadas: Pedro, no dia de São Pedro, eu, pela Festa do Monte e Agostinho, no Dia de Reis.

Nestes dias em que fazíamos anos, a mãe contava-nos sempre as histórias relativas ao nosso nascimento. Todos nós nascemos na nossa casa e o acontecimento envolvia toda a gente, desde a avó Serafina que estava sempre presente, até aos vizinhos que também deitavam a mão, ajudando no que fosse preciso. Então nós lá íamos ouvindo e sabendo a que horas tínhamos vindo ao mundo, se era dia ou noite, quem tinha sido a parteira, quem tinha feito as nossas roupinhas e quem tinha bordado o lençolinho, quando o pai tinha ido falar com o padrinho, em que dia tinha sido o baptizado e quem nos tinha levado à igreja, como tinha sido a festa e quem tinha vindo, e tudo o mais que a mãe se ia lembrando. O mais interessante era quando a mãe contava a história dos nossos nomes, sempre escolhidos pelo pai, que só lhe contava quando chegava a casa vindo da vila, do Registo Civil, com a nossa cédula na algibeira do casaco. Todos achávamos muita graça aos motivos que levaram o pai a escolher os nossos nomes, que a mãe sempre achou bonitos, excepto quando foi Clara, pois não ficou lá muito contente.

Estas e outras histórias ficaram gravadas na minha memória, mas sobretudo na minha alma e no meu coração. Agora que já não temos o abraço da mãe a dar-nos os parabéns e a narrar com mestria os factos da nossa vida, havemos de lembrar sempre com saudade aqueles pequenos momentos feitos de coisas simples mas que foram, sem dúvida alguma, os melhores que tivemos na vida.

 

domingo, 14 de agosto de 2016

Céu estrelado


CONTAR ESTRELAS

No meu tempo de criança, as noites claras e enluaradas do mês de Agosto despertavam em mim o enorme desejo de olhar para o céu salpicado de estrelas, que por ser Verão parecia que brilhavam ainda mais do que nos outros meses do ano.

Pensando naquela lição de que eu muito gostava - Luar de Agosto - do livro da terceira classe que dizia ser este o luar mais bonito do ano, eu olhava para o céu para confirmar se era mesmo verdade o que tinha lido no texto. Enquanto pensava na lição do livro punha-me a olhar as estrelas, a ver se conseguia apanhar alguma a correr de um lado para o outro, o que às vezes acontecia. E silenciosamente também contava as estrelas, mas contava-as mentalmente porque se o fizesse em voz alta podiam nascer-me verrugas nos dedos, pois como costumavam dizer os mais velhos quem contasse estrelas nascia-lhe verrugas e depois para tirá-las era um problema sério. Na inocência da minha tenra idade eu acreditava que assim acontecia, mas na verdade nunca me nasceram verrugas embora gostasse de contar as estrelas.

Este gosto que eu tinha de olhar para as estrelas tornou-se ainda mais acentuado quando na aula de ciências naturais, no primeiro ano do ciclo preparatório aprendi os nomes das constelações. Depois disso, sempre que via o céu estrelado olhava para ele vezes sem fim, tentando descobrir a Ursa Maior e a Ursa Menor que os mais antigos chamavam “As três Marias”.

Nos tempos de hoje, para saborear as noites de Verão, gosto de me sentar silenciosamente na minha varanda, passeando o meu olhar pelo céu, a observar as estrelas. Agora já não me importo contá-las mas ainda há poucos dias, por duas vezes apanhei uma estrela a correr de um lado para o outro. Também já não ando à procura da Ursa Maior ou da Ursa Menor, mas o meu olhar vai directamente para aquela estrela maior e mais brilhante, rodeada de outras estrelas mais pequenas. Junto com o meu olhar vai o meu pensamento de saudade para todos aqueles que já fizeram parte da minha vida e agora transformados em estrelas estão lá no firmamento. E sei que a maior e mais cintilante estrela é a minha mãe que de lá de cima continua a cuidar de mim.

 

sábado, 6 de agosto de 2016

Tempo de apanhar o trigo


A CEIFA

Quando chegavam os últimos dias do mês de Julho o trigo já se mostrava naquele tom amarelo dourado, querendo dizer que estava seco e pronto para ser colhido. Aproximavam-se os dias da ceifa e já se sabia que durante alguns dias o nosso caminho era o do Lombo.

Esta era uma tarefa que exigia alguma preparação para que tudo estivesse pronto naqueles dias. Alguns dias antes a mãe levava o trigo ao moinho para depois fazer uma amassadura de pão e arranjava as cobertas de retalhos e as sacas de pano grosso para o dia da debulha. Enquanto isso o pai já ia contratando homens, mulheres e raparigas para ajudarem na labuta.

O dia da ceifa começava bem cedo, com a mãe atarefada a fazer uma panela de café e a arranjar pão de casa com manteiga ou com ovos fritos para a matina daquela gente que tinha vindo dar o dia a trabalhar na apanha do trigo. Tomavam o café e seguiam para o Lombo, não sem antes terem molhado a garganta (aqueles que tivessem vontade!...) com o tal groguezinho de aguardente que a mãe sempre gostava de oferecer; com este pequeno incentivo, a subida do Lombo do Cantaria e a caminhada pela Levada do Encontro tornavam-se mais ligeiras e num instante chegavam ao Lombo.

O calor da azáfama e a poeira misturavam-se com a alegria, as cantigas e a boa disposição. Mulheres e raparigas, a cabeça coberta por um lenço ou chapéu de palha, arrancavam as espigas com a mão direita e colocavam-nas numa mão-cheia no seu lado esquerdo para depois os homens as recolherem uma a uma e formarem as maçadoiras que amarravam com um pequeno feixe de espigas. Depois iam-nas empinando de tal modo que pareciam engraçadas cabanas onde os mais pequenos logo aproveitavam para brincar às escondidas. Era divertido brincar à volta destas cabanas, correndo e sentindo nos pés descalços a terra quente, leve e fofa de onde há pouco se tinham arrancado as espigas do trigo. De vez em quando surgia no meio do trigo uma ninhada de murganhos que faziam as mulheres darem saltos e gritinhos enquanto os homens desatavam às gargalhadas e os pequenos corriam e se afastavam com receio de que eles lhes passassem por cima dos pés.
 
A mãe ficava em casa a fazer o almoço, semilhas americanas descascadas e cozidas com bacalhau. E como eram gostosas aquelas semilhas!... A mãe juntava-lhes umas cebolas novas cortadas em quatro que para além de as tornarem mais saborosas, eram depois acrescentadas ao molho de azeite e vinagre do bacalhau deixando-o ainda mais apetitoso.

O almoço, embrulhado na toalha branca de algodão era transportado na tampa de vimes, porque como era para muita gente o cesto de asa mais pequeno não dava para levar tudo. Era o nosso Pedro ou um dos rapazes mais novos que andavam no trigo que vinham a casa buscar a tampa e muito cuidadosamente a levavam às costas pela levada adentro até ao Lombo. E à sombra dos pinheiros ou em qualquer outro espaço onde se pudessem abrigar do sol e do calor, todos se sentavam a almoçar, acompanhando as semilhas americanas e o bacalhau com um copo do nosso vinho que logo de manhã tinha sido levado no garrafão de cinco litros, aquele garrafão de vidro verde-escuro forrado com palhinha trançada.

Depois de todo colhido, os homens com aquela enorme foice roçavam o trigo separando as espigas do restolho que depois de amarrado em molhos seria arrumado no sobrado do palheiro, para na devida altura ser usado na cobertura dos nossos palheiros. As espigas eram arrumadas em montes para daí a uns dias serem debulhadas. Às vezes o pai chegava a dormir no sobrado para cuidar do trigo durante a noite, não fosse algum amigo do alheio atrever-se a lá ir roubar algum trigo para aumentar a sua colheita.

Para nós os pequenos, estes eram dias bem passados. À tardinha chegávamos a casa cheios de terra dos pés até à cabeça, mas vínhamos muito descontraídos e felizes. Quando à noite depois da ceia nos sentávamos no terreiro a refrescar do calor, havia sempre as histórias e artices do dia para contar e as nossas alegres risadas que logo depois nos faziam cair na cama e dormir num sono só até ao outro dia de manhã.

 

domingo, 19 de junho de 2016

Os Santos Populares


TEMPO DE SÃO JOÃO

São João marcava o tempo. Era quase sempre uma referência para algum facto ou acontecimento que tivesse sucedido no mês de Junho. Quando alguém dizia que isto ou aquilo tinha sido pelo São João, já se sabia que era por esta altura do ano.

Pelo São João chegavam os dias compridos cheios de sol, amadureciam as primeiras ameixas, as de São João, e as outras já começavam a luzir; começava o tempo da fartura e das colheitas do trigo e das semilhas. Era o começo do Verão, o tempo em que se esquecia o Inverno e aqueles intermináveis dias cinzentos, com chuva, vento e frio de manhã até à noite. Por isso, toda a gente gostava de festejar o São João.

As tradições eram muitas e variadas.

Havia quem gostasse de enfeitar o terreiro com rebentos verdes de canavieira, galhos de louro verde e de alecrim porque se dizia que estas verduras ficavam benzidas na manhã de São João.

Uns dois dias antes, rapazes e raparigas juntavam-se e pela noite dentro enfeitavam as fontes, com as mesmas verduras e ainda com vasos de flores que iam buscar às casas dos vizinhos sem que estes se dessem de conta.

Na véspera de São João, à noite, saltava-se a fogueira no largo da ponte. Às vezes as labaredas da fogueira tornavam-se demasiado altas e só mesmo alguns rapazes mais destemidos se atreviam a saltá-las; o cheiro a louro e a alecrim espalhava-se por todo o sítio.

Na manhã de São João, havia quem tentasse adivinhar o seu destino tirando sortes. Dizia-se que a água da fonte estava benzida antes do sol nascer; então as raparigas levantavam-se muito cedo e iam à fonte encher a bochecha de água que só deitavam fora ao primeiro rapaz que encontrassem pelo caminho e seria esse o nome do rapaz com quem iriam casar.

Outra sorte era escrever nomes de rapazes em vários papelinhos enrolados que se colocavam debaixo do travesseiro e o que estivesse aberto pela manhã, seria o nome do rapaz com quem iriam casar.

 Também se tirava a sorte partindo um ovo inteiro para dentro de um copo de água e o desenho que o ovo fizesse na água seria o destino. Havia raparigas que viam a imagem de uma igreja e uma noiva com véu e logo deduziam que se iam casar; também havia quem visse um navio e porque tinha o marido ou irmãos embarcados acreditava logo que ia embarcar ao encontro deles.

Eu sempre achei muita graça nestas sortes mas não acreditava nelas; dava-me vontade de rir quando ouvia fulana e sicrana contar a sorte que lhes tinha saído, mas nunca tirei sortes, não me ia levantar de madrugada só para isso. No entanto, gostava muito de saltar a fogueira, lá isso não deixava passar, e ainda me lembro de ter chamuscado as pernas numa fogueira que já estava um pouco grande para o meu tamanho.

Mas o que eu gostava mesmo pelo São João eram as histórias que a mãe contava quando no seu tempo de rapariga ia com a avó e outras raparigas suas vizinhas enfeitar a fonte das Fontes. Segundo dizia a mãe, a avó Silvéria era uma grande entusiasta destas tradições e estava sempre pronta para acompanhar as raparigas nestas andanças, era mesmo a primeira da frente. Pelo meio destas histórias havia sempre muitas peripécias e as cantigas que a mãe alegremente nos cantava:

- “São João adormeceu nas escadinhas do coro, as moças deram com ele e beliscaram-no todo”. E na minha imaginação eu via o santo muito encolhido nos degraus do coro da nossa igreja e as raparigas todas à sua volta a dar-lhe beliscões.

- "Vem o Santo António, depois São João, por fim vem São Pedro para a reinação."

Esta e outras cantigas faziam parte do repertório da mãe que gostava de cantá-las de vez em quando, mesmo não sendo tempo de São João. Inevitavelmente, quando chega a esta altura, eu também me lembro delas e continuo a ouvir a bonita voz da mãe a cantar na minha memória.

Já não salto a fogueira desde esse tempo, mas enquanto Deus me conservar a minha voz, hei-de sempre cantar aquelas cantigas porque são elas que me lembram o tempo do São João.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 10 de junho de 2016

10 de Junho - Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas


REDACÇÕES

Na minha quarta classe da Escola Primária os temas das redacções eram muitas vezes sobre as figuras importantes da História de Portugal. Estas ilustres personagens costumavam aparecer tanto no Livro de Leitura como no livro de História.

Sendo Luís de Camões uma das figuras obrigatoriamente estudadas, não poderia deixar de ser também um título obrigatório nos textos que então escrevíamos. E não deixava de ser interessante porque assim já demonstrávamos o que tínhamos aprendido na História de Portugal.

Desse tempo da escola primária, guardo como uma verdadeira relíquia o meu processo individual, com todas as provas da primeira à quarta classe, aquelas provas que então fazíamos em papel almaço, com a margem dobrada. Deu-mo a minha saudosa professora, D. Fernandina Brazão, já depois de eu ser também professora. Numa dessas provas a redacção tem como tema “Luis de Camões”, o maior poeta da Língua Portuguesa, a quem aprendi a admirar desde então.

 Serei eternamente grata à minha professora por me ter ensinado a dar os primeiros passos no mundo da leitura e da escrita, bem como por me ter levado a descobrir os valores da História de Portugal.

 

Funchal, 10-06-2016

 


 



 
 



 

sábado, 14 de maio de 2016

É tempo de ir ao moinho...


MOENDO O TRIGO E O MILHO

Na caixa grande da cozinha não podia faltar no saco a farinha de trigo. Era sempre precisa para amassar o pão naquelas datas assinaladas, para a mãe fazer umas malassadas ou um bolo na frigideira nas tardes de domingo, ou para fazer umas papas na panelinha de ferro, principalmente no tempo do frio. E naquelas manhãs em que ainda não havia pão e eu tinha que ir cedo para as aulas no colégio, a mãe fazia uns daqueles bolos rápidos na frigideira, que nem levavam fermento, com salsa picadinha para ficarem mais saborosos. Eu ficava feliz da vida quando ainda me estava a arranjar e já lhes sentia o cheiro na cozinha; com café eram uma verdadeira delícia. Por isso, de vez em quando era preciso ir ao moinho levar o trigo para moer e também o milho para se fazer milho cozido, com couve picadinha e torresmos que ficavam no fundo da panela; cozido a lenha tinha um sabor inigualável.

 O ritual começava com a mãe a joeirar o trigo com a joeira, escolhendo e tirando as palhinhas ou preganas que eventualmente tivessem vindo junto quando tinha sido debulhado. Eu achava muita graça aos movimentos circulares que a mãe fazia com a joeira e também ajudava a escolher.

Entretanto, a mãe já tinha arranjado os sacos de pano branco onde se colocava o trigo depois de joeirado e limpo. Estes sacos eram feitos a partir daquelas sacas de algodão resistente que traziam o açúcar ou o arroz para ser vendido avulso na venda. Depois de bem lavadas, coradas ao sol na laja da ribeira e metidas na água com anil, o pano ficava branquinho; dele se faziam toalhas para a cozinha, as toalhas para o pão que só eram usadas quando se amassava, para colocar o pão já tendido a levedar antes de ser metido no forno e para embrulhá-lo depois de cozido, e os sacos para levar o grão ao moinho, usados exclusivamente para esse fim.

Eu gostava de ir com a mãe ao moinho. Habitualmente íamos ao moinho do senhor Brazão, ali mesmo na Capela Velha; só mesmo em caso de necessidade a mãe ia ao moinho do Passa-sol, mas nesse lugar a ribeira era perigosa e por esse motivo eu nunca lá fui. Ao moinho do senhor Brazão eu fui muitas vezes, no tempo em que o moleiro que lá trabalhava era o João Miúdo e depois o João Gomes. Lembro-me de ir pela levada e de ver lá na beira a água em grande quantidade a descer para o moinho.

Dentro do moinho eu via tudo branco enfarinhado e enquanto a mãe conversava com o moleiro, eu punha-me a olhar para aquela gavetinha de madeira a dançar ritmadamente de um lado para o outro, fazendo cair sem parar os grãos de trigo que ao mesmo tempo iam sendo engolidos pela pedra redonda para serem moídos e transformados em farinha. Também ia até à rua, à beirinha do terreiro, deitava a cabeça e espreitava muito curiosa aquela grande roda de pedra, a mó do moinho, a girar fazendo um barulho ensurdecedor, no meio da água a jorrar por todos os lados.

Depois vínhamos embora, a mãe trazendo o saco maior com a farinha e um pernil amarrado com o rolão, eu o saco mais pequeno e mais leve com o farelo. Como pagamento pelo seu trabalho o moleiro tinha guardado para si uma maquia do trigo que a mãe tinha levado; era este o modo de pagamento.

São lembranças de outros tempos e modos de vida que hoje se encontram fora de moda.

 
 

sábado, 7 de maio de 2016

Naquele lado (nos Barros)...


VAMOS AOS BARROS

O sítio dos Barros sempre fez parte das nossas vivências.

Aquele lado, como sempre ouvíamos, entrava muitas vezes nas histórias que a mãe nos contava e, pelo modo carinhoso como de lá falava, sentíamos que ocupava um lugar especial no seu coração.

Nos Barros nasceu e cresceu a nossa avó materna, a avó Silvéria, e lá vivia toda a família desse lado materno. Para além dos irmãos da avó, o tio António, a tia Segunda, a tia Joana que estava embarcada na América e a tia Maria Luísa, também havia muitos primos e primas que a mãe e a tia conheciam muito bem e a quem devotavam grande estima.

Muitas vezes ouvimos a mãe contar, de quando ainda era pequena, as suas idas aos Barros, a casa da sua avó Antónia, sobretudo na primeira oitava do Natal; a mãe lembrava com saudade que a avó oferecia um brindeiro a cada neto e depois trazia uma joeira cheia de laranjas e distribuía também por todos. Também sabíamos, porque ouvimos vezes sem conta a mãe e a tia contarem, que o nosso tio Agostinho fora criado nos Barros em casa da avó.  
Tia Maria Segunda, avó Silvéria, tia Maria Luísa e tia Joana


De vez em quando a mãe ia àquele lado visitar as tias e o tio, e quando a tia vinha de São Jorge também costumava lá ir fazer a sua visita. A mãe sempre arranjava um motivo para ir aos Barros, às vezes porque tinha os novelos de retalhos já prontos para tecer tapetes e lá tinha uma prima que era tecedeira, ou então porque queria ver a tia Joana que tinha vindo da América.


Ainda me lembro bem de acompanhar a mãe ou a tia quando iam àquele lado. Nesse tempo não havia estrada por isso tínhamos que ir a pé; íamos pelo Lombo de Baixo, descíamos o caminho da Terça por entre os eucaliptos que logo no início nos tapavam a vista e os campos cultivados que se iam sucedendo, e atravessávamos a ribeira lá em baixo no Foro; ali havia umas tábuas de madeira a fazer de ponte, mas nem sempre lá estavam porque quando a ribeira enchia levava tudo por lá abaixo, então tínhamos que passar para o outro lado saltando de pedra em pedra.

Assim que chegávamos ao início do caminho dos Barros começava a “peregrinação”. Ali mesmo morava uma prima da avó, e a mãe costumava entrar para cumprimentá-la. Logo depois, já era a casa do tio António e quase encostado, morava o seu primo Afonso; andando mais um bocado a mãe encontrava ainda outras primas, para então chegar a casa da tia Maria Luísa. Também fazia parte do roteiro a visita ao primo António e a uma tia já velhinha que morava lá perto; e não podia faltar a visita à tia Segunda que vivia nos Lameiros e ao menos um cumprimento e umas simples palavras às sempre estimadas primas.

Assim se passavam as horas. O tempo não chegava para todas as visitas e o regresso tinha que ser ainda com dia porque era perigoso atravessar a ribeira de noite e subir a Terça às escuras, pois não havia luz.

Já depois de um pouco mais crescidos, no dia do Espírito Santo dos Barros, mesmo que não pudesse ir e para manter a tradição, a mãe costumava mandar-nos a casa dos tios, e nós lá íamos muito contentes. Fazíamos sempre o mesmo caminho e íamos a casa do tio António e da tia Maria Luísa. Não sei como a mãe nos deixava ir assim sozinhos, mas a verdade é que íamos, depois dos avisos para termos muito cuidado ao atravessar a ribeira. Ao fim da tarde regressávamos sãos e salvos e a tradição continuava, ainda não se havia perdido.

São boas lembranças que o tempo não deixa esquecer!...