quarta-feira, 30 de março de 2016

Sol de verão...


DIAS DE CALOR 

Nestes dias de sol e calor intenso, muitas vezes lembro-me da mãe.

A mãe não gostava mesmo nada do inverno: por causa da chuva, porque assim não podia ir ao Lombo ou às Fajãs, do frio que a obrigava a andar agasalhada e lhe punha roxa a ponta do nariz e também pelas noites grandes as quais, como ela mesma dizia, demoravam muito e parecia que nunca mais o dia clareava.

Então, quando o tempo aquecia mesmo, dizia com ar satisfeito que assim já podia andar de manga curta e os braços já podiam apanhar sol. E de lenço na cabeça, amarrado na nuca, lá ia para os seus afazeres, nas Fajãs ou no Lombo. Chegava a casa vermelha e acalorada, dizendo “que calmaria!...”.

Depois de descansar um bocado, aproveitava que estava muito calor e sentava-se a bordar debaixo da vinha, naquele banco improvisado que o pai havia arranjado com um rolo de tronco de pinheiro. Se estivesse sozinha, só com a gente por ali à sua roda, punha-se a cantar o que lhe viesse à cabeça, as cantigas do São João, do Max ou das Missas do Parto e do Natal; também contava histórias e acontecimentos de quando era mais nova, mas se tivesse a companhia de alguma vizinha aproveitava para por a conversa em dia.

Ai que saudades!...

 

sexta-feira, 25 de março de 2016

Vermelho como eu gosto...


O MEU CASACO VERMELHO
Teria eu talvez uns sete anos quando tive um casaco vermelho, um casaco de abafo, como então se dizia.

Foi a tia que comprou o tecido em lã para a mãe nos fazer os casacos, para mim e para as minhas irmãs mais pequenas; quem os fez foi Teresinha do Mário que era costureira. O casaco foi feito à moda de então, curto com um palmo acima do joelho.

O meu casaco de abafo tinha duas algibeiras, uma de cada lado; os botões um pouco grandes, dourados e com uma casinha em relevo faziam-me olhar para eles vezes sem fim.

Eu adorava o meu casaco vermelho. Levava-o vestido para todo o lado, fosse à missa, à confissão ou à catequese, mas não o levava para a escola porque não era para usar de cote e sim naquelas ocasiões em que precisava estar melhor apresentada; era um casaco da missa.

Nunca me esqueci dele e ainda consigo ver-me com ele vestido. À distância dos anos, imagino que me deveria ficar bem, com a minha pele branca, o cabelo castanho escuro e os olhos azuis.

Devo ter gostado tanto daquele meu casaco que o guardei na minha memória e ainda hoje gosto muito de me ver vestida com a cor vermelha. É uma cor que sempre me fica bem!...

 
 

 

 

quinta-feira, 24 de março de 2016

Trigo verde, trigo loiro


À ESPERA DA CEIFA

            Na estação da Primavera todo o nosso Rosário se vestia de verde. Para qualquer lado que olhássemos podíamos ver as searas de trigo envoltas num maravilhoso verde tenro que encantava a nossa vista. Quem parasse por uns momentos ali na curva da Achada do Beirão, desfrutava da magnífica paisagem oferecida pela Achada do Loural com os seus muitos palheiros de restolho emergindo graciosos no meio dos verdes campos de trigo, imagem que se eternizou e percorreu o mundo através dos postais comprados pelos muitos turistas que por ali passavam em excursão. O mesmo acontecia à medida que se ia descendo a estrada até ao Lombo de Baixo: verde, verde e mais verde para onde quer que se olhasse.

Pela Quinta-feira de Ascensão, dia santo de guarda, era um regalo para a vista olhar os campos de trigo, já espigado e começando a amarelecer, salpicados aqui e ali por flores amarelas, os pampilros, que as raparigas colhiam para fazer cordões com que se embelezavam nesse dia. Então era ver pela tarde, magotes de raparigas com esses cordões amarelos ao pescoço, descendo o Lombo por entre cantigas, brincadeiras e gargalhadas, até lá abaixo, à espera do Espírito Santo que regressava da visita à Ribeira Grande e Achada do Til. Ali mesmo na volta do Lombo seria celebrada a já esperada Missa Campal que dava por encerrada a Visita Pascal aos sítios da paróquia do Rosário.

            Quando chegava o Verão a paisagem começava a transformar-se. Aos poucos, os tons de amarelo e dourado tomavam conta dos campos e era um encanto ver o trigo a cintilar ao sol cada vez mais ardente, à espera da hora de ser ceifado.

E em finais do mês de Julho chegava a altura da ceifa, dias de verdadeira azáfama.

Homens e mulheres, rapazes, raparigas e crianças, a cabeça coberta por um lenço amarrado na nuca ou chapéu de palha, todos ajudavam a apanhar o trigo. Em todos os campos se viam grupos envolvidos nessa tarefa. De vez em quando, daqui e dali ecoavam as vozes das mulheres e raparigas cantando as cantigas próprias desta alegre faina agrícola, enquanto os homens com aquela grande foice iam roçando o trigo e separando as espigas do restolho.

Depois viriam as máquinas com aquele som característico e tão conhecido, para debulharem o trigo, separando o grão para um lado e a palha para outro.

Eram dias de grande labuta, mas era Verão; os dias compridos ajudavam a que se fizesse todo o trabalho e ainda sobrava tempo para um dedo de prosa ao luar de Agosto.


 

quarta-feira, 23 de março de 2016

Aqui chega uma visita...

O ESPÍRITO SANTO EM CASA DA TIA NARUÍNDA

No dia do Espirito Santo do Loural íamos sempre a casa da tia Naruínda.
Para nós este era um acontecimento importante e sempre muito aguardado.
No dia do Espírito Santo, em casa da tia Naruínda

Depois da missa de domingo, lá íamos todos subindo devagar o caminho do Loural. Era um caminho diferente, ao qual estávamos pouco habituados, pois só por lá passávamos esta vez no ano, e parecia que nunca mais chegávamos lá acima.


Quando passávamos ao pé do casarão, havia aqueles grandes eucaliptos que nos tapavam a vista e fazia um bocado de medo, então começávamos todos a correr por lá acima porque já sabíamos que faltava pouco para chegarmos a casa da tia.


 Como já era hábito a nossa visita neste dia, a tia Naruínda e todos os primos já estavam à nossa espera. Não sei como, mas lá se arranjava lugar para todos nós almoçarmos na mesa da cozinha; ainda hoje me lembro da canja de galinha que a tia fazia e, não sei porquê, tinha sempre um sabor diferente daquela que a mãe fazia na nossa casa.

Os primos, todos mais velhos do que nós, faziam uma festa com esta pequenada lá em casa, e as primas até nos tiravam algumas fotografias que  guardamos com muito carinho.
 
À tarde regressávamos a casa cansados mas felizes, contando repetir a visita no ano seguinte.



 

domingo, 20 de março de 2016

Cheiro de alecrim...


DOMINGO DE RAMOS

Logo pela manhã toda a gente se empenhava em arranjar o seu ramo para levar à missa e ser benzido. Podia ser um galho de laranjeira com flor ou também de acácia em flor, mas não podia faltar o alecrim.

A bênção dos ramos acontecia no Canto da Ponte e com as suas capas vermelhas, os irmãos do Santíssimo Sacramento recebiam um ramo de palma com uma fitinha de seda da mesma cor. Depois seguia-se a procissão, pela ponte para cá até à igreja onde se celebrava a missa. As vozes do povo cantando Hossana e Bendito ressoavam por toda a Capela Velha.

Dentro da igreja cheirava a incenso misturado com os aromas do alecrim, flor de laranjeira e acácia. O povo deixava-se envolver pela leitura da Paixão e pelos cânticos que embelezavam toda a cerimónia.

Aqueles ramos benzidos seriam depois colocados à porta de casa para afastar as invejas, o mau-olhado e os temíveis maus espíritos.

Começava a Semana Santa!










  




terça-feira, 15 de março de 2016

Vamos p'rà festa



O BOM JESUS DE PONTA DELGADA
 
A festa do Bom Jesus de Ponta Delgada era tão vivida quanto a Festa do Rosário, apesar de não ser na nossa freguesia. É um dos dois grandes arraiais do nosso concelho, e por isso sempre foi muito festejada. Em casa não podia faltar a já tradicional amassadura de pão, e o pai comprava sempre carne de vaca, para se fazer uma espetada no sábado à tarde e o guisado no almoço de domingo.
 
Na sexta-feira, mais ou menos pela hora do almoço, começavam a passar os romeiros para a festa; vinham a pé, dos lados do Sul e do Curral das Freiras. Desciam pelo Quebra-Panelas e a primeira paragem era no largo da ponte, na venda do padrinho, o senhor Faria. Logo ali faziam um brinco e o povo já ficava todo animado.
 
A mãe contava que naquele tempo em que vinham muitos romeiros, alguns pernoitavam nas casas de algumas famílias, preparavam ali as suas refeições (o tradicional caldo da romaria) e conviviam uns com os outros fazendo amizades que perduravam no tempo. Era uma brincalhada, como dizia a mãe. A cozinha da casa da madrinha enchia-se de romeiros e também a nossa casa, a da avó Serafina. Nas Fontes, a avó Silvéria estendia as cobertas de retalhos no chão da cozinha e no sobrado do palheiro, e muitos lá dormiam. Havia brincos ao toque do rajão e das castanholas, cantigas ao despique e muito convívio entre residentes e forasteiros. Alguns já deixavam destinado que no ano seguinte ali estariam, contando de antemão com o abrigo daquela família.
 
Depois da festa, a paragem era no Chão dos Louros. A segunda-feira do Setembro, logo depois do domingo da Ponta Delgada era um verdadeiro dia de festa para as gentes de São Vicente. Os romeiros paravam ali, havia barracas de comes e bebes e também bancadas de quinquilharias onde não podiam faltar as castanholas, os chapéus de palha e as carapuças de vilão. Havia quem fizesse uma espetada, outros faziam uma panelada, cozendo o almoço nos lares que lá havia, mas muita gente levava um grande farnel para fazer o seu piquenique. Toda a gente brincava e se divertia, ainda mais quando estava bom tempo.
 
Ao fim da tarde, lá vinham magotes de rapazes e raparigas descendo a Ponte Ladeira, passando pelas Covas e pelas Caldeirinhas, brincando e cantando aquelas cantigas que todos sabemos desde pequenos:
 – Viva o Chão dos Louros, viva a Encumeada; viva a nossa malta que está toda animada! – É São João, tiroliroliro; é São José, tiroliroliro; no garrafão, tiroliroliro; só tem jaqué!
 
Era assim que por aqueles lados se vivia o arraial da Ponta Delgada.
Outros tempos!...                  

 

Vem ali um brinco


SEXTA-FEIRA DE PONTA DELGADA

Este era um dia de muito movimento nas vendas e nos caminhos. Passavam os romeiros para a Festa do Senhor Bom Jesus e muita gente vinha para o caminho ver os brincos e a animação.

Uma vez, era eu ainda pequena, a mãe mandou-nos logo pela manhã, eu e Agostinho, às Fajãs apanhar os tomates que já estavam maduros, numa caseira que tínhamos num poio ali mesmo em frente ao palheiro de cima. Como os tomateiros estavam mesmo à beirinha do caminho, algum romeiro poderia ser tentado a apanhar os tomates e levá-los para fazer um guisado lá na Ponta Delgada. Então, lá fomos os dois, levando enfiado no braço um pequeno balaio daqueles feitos de canas.

Quando chegámos um bocadinho acima do Encontro, havia ali um descanso onde os homens costumavam descarregar por alguns momentos a carga que traziam, para aliviarem as costas. Por cima do dito descanso, havia uns galhos de silvado carregadinhos de amoras maduras que estavam mesmo a pedir para serem comidas. Como ainda era um pouco cedo, ali parámos; sem pressa nenhuma, lá eu me empoleirei em cima da parede que até nem era muito alta e pus-me a apanhar as amoras enquanto Agostinho as colocava no balaio para depois as irmos comendo no resto do caminho até às Fajãs.
 
Mal tínhamos começado a apanhar as amoras, já ouvimos uns toques de rajão e castanholas e, com muita pena nossa, tivemos que interromper a apanha das amoras e fomos embora depressa. Logo vimos um grupo de romeiros a fazer um brinco no Cabo da Vargem, ali mesmo ao pé da casa do José Gonçalves. Nós nem sequer parámos a ouvir o brinco, fomos o mais depressa que podíamos a caminho das Fajãs, com medo que os nossos tomates já tivessem sido apanhados. E se isso realmente tivesse acontecido, como iríamos dizer à mãe que por causa das amoras, não tínhamos ido direitos como nos tinha mandado. Esta é que era a nossa grande preocupação.

Para nosso descanso, os tomates ainda lá estavam e trouxemo-los como a mãe nos tinha mandado, mas este simples episódio, aparentemente sem graça nenhuma, ficou-nos gravado na memória e de vez em quando ainda falamos nele.

Como hoje é sexta-feira de Ponta Delgada naturalmente lembrei-me dele.



 

Em romaria...


VAMOS À PONTA DELGADA

A Festa do Senhor Bom Jesus foi, desde sempre, um grande arraial e toda a gente gostava de lá ir, uns porque tinham promessas a pagar e outros pelo simples prazer de se divertir. Também nós queríamos ir à festa e bem pedíamos à mãe para nos levar porque fulana e sicrana também iam, mas a mãe não estava pelos nossos ajustes, pois ainda éramos todos pequenos e não lhe era fácil sair assim de casa com todos ao mesmo tempo; só nos restava esperar pela Festa do Rosário, que era mesmo ao pé de casa.

Quando já éramos todos maiores, houve um ano em que (finalmente!!!) fomos à festa. O pai tinha uma promessa e tivemos mesmo que ir todos. A mãe chamou o carro do senhor Agostinho para nos levar e trazer, e lá fomos todos de carro, só até à Ribeira da Camisa porque a partir daí a estrada estava fechada. Depois fomos andando a pé até à Ponta Delgada o que ainda era um bom pedaço de caminho.

Embora a promessa fosse do pai, tivemos todos que ir à igreja, e uns atrás dos outros, subir aquelas escadinhas até lá acima, e beijar os pés da imagem do Senhor Bom Jesus. Só depois desta volta feita é que fomos então a uma barraca fazer uma espetada e tomar a bebida própria do arraial: um quarto de litro de vinho e duas ou três laranjadas, tudo misturado num jarro grande que depois era distribuído por todos apenas com um ou dois copos. Mais do que a espetada, era esta bebida que nos lembrava mesmo o arraial.

O regresso foi uma verdadeira aventura. Quando já íamos a caminho da Ribeira da Camisa começou a cair uma chuva miudinha que depois foi engrossando e se tornou num grande e persistente pé de água que nunca mais parava. Embora o carro do senhor Agostinho estivesse à nossa espera, quase não cabíamos todos porque a carroçaria encheu-se de gente querendo escapar à chuva e tentando chegar o mais rápido possível a São Vicente. Mas lá viemos embora, o pai e a mãe à frente ao lado do condutor e nós em cima da carroçaria, espremidos no meio de toda aquela gente que já havia subido antes de nós. Chegámos a casa num pingo, como se costuma dizer, mas o pai cumpriu a sua promessa e nós fomos à festa da Ponta Delgada.

 

sábado, 12 de março de 2016

Meu Brasil

A VIAGEM DA TIA AO BRASIL
 
Em finais do ano de mil novecentos e setenta e um, quando eu andava na quarta classe, a tia fez a sua primeira viagem ao Brasil. Para nós, ainda pequenos, esta viagem foi o acontecimento do ano, pois em casa não falávamos de outra coisa.

A tia partiu em Novembro, no navio Franca C e a viagem até ao porto de Santos demorou duas semanas. Enquanto não tivemos notícias da sua chegada ao Brasil, vivemos todos numa grande ansiedade, até que finalmente o carteiro nos trouxe uma carta, dando conta de que a viagem tinha corrido bem e da alegria pelo encontro com os tios.

Durante o tempo em que a tia permaneceu em terras brasileiras, mais de três meses, nós por cá íamos imaginando e falando sobre o que estaria a acontecer por lá e o que andaria a tia a fazer.

Pelo Natal chegou o postal de boas festas contando como os tios iriam viver este Natal, tão especial porque a tia também lá estava. Depois vieram outras cartas, o que para nós era sempre uma alegria: assim ficávamos a saber das novidades e íamos acompanhando a viagem, contando os meses que ainda faltavam para a tia voltar.

Nessa época estava na moda aquela cantiga “Eu te amo meu Brasil” que todos os dias passava na música pedida do Posto Emissor do Funchal. Nós tínhamos o rádio na cozinha e ficávamos sempre à espera que essa cantiga fosse pedida; assim que ela surgia fazíamos uma enorme algazarra, cantando e batendo palmas, todos contentes e felizes pensando na tia que estava no Brasil; e a mãe, feliz porque a tia estava com os seus irmãos que há anos haviam partido, também ajudava à nossa festa.

A tia regressou no mês de Março e veio outra vez de navio. A mãe e Pedro foram ao Funchal, esperar o navio na Pontinha. Nós ficámos em casa esperando, ansiosos e felizes, pensando que a tia nos havia de trazer qualquer prenda.

 Parecia outra a nossa tia. Chegou com um novo visual, mudara a cor do cabelo para um castanho dourado - quando lhe perguntámos porque tinha o cabelo daquela cor, dizia que era do sol que tinha apanhado e nós acreditávamos - e os ares do Brasil tinham-lhe feito mesmo muito bem.


A tia Maria Segunda e o tio Agostinho juntos no Natal em Santos
E não nos enganámos. Trouxe um grande caixote cheio de coisas para todos. Para além do café com aquele aroma inconfundível que enchia toda a casa, também nos trouxe roupas, um mapa do Brasil, uma enciclopédia onde poderíamos aprender tudo sobre os estados brasileiros, cidades, monumentos, folclore e outras curiosidades; não poderia faltar a imagem da Nossa Senhora da Aparecida, com o manto azul cheio de brilhantes, e ainda outras coisas que os tios nos tinham mandado.


Na bagagem vieram também muitas fotografias dos tios e dos primos bem como dos lugares por onde a tia andou a passear. E junto com as fotografias vieram muitas histórias que nós ouvíamos atentamente, desenhando na nossa imaginação esses lugares e acontecimentos que a tia com tanta emoção nos descrevia.


Acompanhámos entusiasmados a grande festa que houve no navio quando passaram a linha do Equador e como também a tia tinha participado nela. Sentimos o encanto da viagem que a tia fez juntamente com o tio Agostinho à moderna capital Brasília, a Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais e ao Rio de Janeiro. Em Petrópolis deixámo-nos deslumbrar pela beleza do Palácio Imperial e pelas histórias do Imperador D. Pedro. Olhámos maravilhados as belas cachoeiras de Poços de Caldas. Vimos os passeios na praia de Santos com os primos Ramiro e Filomena e ouvimos as gargalhadas da Silvéria, da Valéria e do Toninho, em casa do tio António no Riacho Grande.

Assim começou a crescer dentro de nós aquele grande desejo de também um dia atravessar o oceano até ao Brasil, ao encontro de tios e primos que tal como nós são ramos da árvore da nossa vida.

Assim será sempre lembrada a primeira viagem da tia ao Brasil.


 
 
   

 

  
  

 


  

quinta-feira, 10 de março de 2016

O tio João


ENCONTRO NO PARAÍSO

O tio João deixou-nos, partiu para a sua última viagem. Foi o último dos filhos do avô das Fontes, o avô Manuel Machete, a terminar a sua missão neste mundo.

Perante esta realidade dou por mim a pensar que certamente já todos se encontraram no paraíso, aquela família da qual também eu venho e da qual ouvi muitas histórias contadas pela mãe e também pela tia.

A vida eterna será sempre um grande mistério para o qual tento encontrar uma explicação e que como qualquer mortal me questiono muitas vezes, sem no entanto chegar a qualquer conclusão. Então ponho-me a imaginar como terá sido o encontro dos avós Manuel e Silvéria com os tios, pois agora já estão todos reunidos no céu, esse espaço que se diz ser bom, de muita paz e onde se vive eternamente. Imagino que este encontro terá sido cheio de alegria e que terão feito uma grande festa, com música, cantigas e muitas artices à mistura. Uma família que na sua passagem por este mundo sempre fez reinar no seu seio a amizade, união, alegria e boa disposição, com certeza terá nesse plano superior uma vida que de algum modo se assemelhe aos valores espirituais que viveu na sua vida terrena.

Nestes momentos em que dou voltas aos meus pensamentos e à minha memória, relembro todos, avós, mãe e tios, quer através das minhas vivências quer através das histórias que a mãe e a tia sempre contavam. Imagino-os todos juntos lá em cima, a torcerem por nós, a nos darem força e a pedirem a Deus que nos ajude na nossa vida.

Nós, os seus descendentes, temos a responsabilidade de fazer com que vivam para sempre na nossa memória, passando para os mais novos os valores que nos ensinaram, não esquecendo as histórias, as artices e a alegria tão características da nossa família. Lembrando sempre que somos Machetes!

 

Funchal, 06-04-2015 








 
 



terça-feira, 8 de março de 2016

Férias de verão


AS FÉRIAS GRANDES

As férias eram mesmo grandes, pois a escola terminava no fim de Junho e só recomeçava a sete de Outubro. Havia tempo para fazer tudo e mais alguma coisa e também havia tempo para me sentir aborrecida por não ter nada para fazer.

Para mim, que sempre gostei de andar na escola, as férias grandes pareciam não ter fim e aguardava ansiosamente a chegada do mês de Outubro, para começar na classe seguinte. Então, nesses tempos de completa malandrice em que as horas custavam a passar, entretinha-me com a leitura dos livros da Biblioteca da Gulbenkian, fazia cópias, mais cópias e palavras difíceis até encher um caderno, e escrevia vezes e mais vezes os nomes completos do pai, da mãe e de nós todos com as respectivas datas de nascimento. Às vezes metia-me sorrateira dentro de casa, ia à gaveta da mesa da sala e lia e relia vezes sem conta as cartas e os postais das primas da Venezuela e dos tios do Brasil. Depois dava uma volta até à casa da madrinha, lia o Diário de Notícias, a revista Flama e até a Crónica Feminina, e ia ouvindo as histórias que a madrinha contava enquanto descascava o feijão ou as semilhas para a sopa, fazia crochet ou bordava a ponto de corda a letra inicial do seu nome nas toalhas da cozinha.

Assim que as ameixas da nossa ameixieira da porta da loja começavam a luzir eu começava a trincá-las ainda meio esverdeadas – só de me lembrar já me cresce água na boca! - mas quando já estavam vermelhas eu subia à ameixieira várias vezes ao dia. Não sei como conseguia, mas a verdade é que subia bem até à ponta da ameixieira que para o meu tamanho era bastante alta. Quando estava lá em cima achava engraçado ver, por cima do telhado da casa da madrinha, as casas do lado do Estreito que não se conseguia ver das janelas da nossa casa.

Pelo meio de tudo isto, ainda havia o tempo dedicado aos meus bordados, o ponto de cruz e o ponto do diabo, e bordava sempre um pano de tabuleiro para oferecer à tia ou para mandar às primas da Venezuela.

Mais à tarde, quando o calor já tinha abrandado, havia as tarefas da fazenda: ajudar o pai a regar o feijão – eu ficava na beira da cerca a ver quando a água chegava para dizer ao pai que podia andar com a água para a frente -, escolher os tremoços no meio da palha, quando o pai malhava os tremoceiros secos, debaixo do castanheiro nas Fajãs, ou mondar o côco nos regos de rama das batatas, no Lombo, na terra onde se tinha ceifado o trigo.

À noite, como não havia televisão, sentávamo-nos no terreiro e encantávamo-nos com as histórias que o pai contava, desde A Cigarra e a Formiga, em verso, até às histórias do Brasil e do Curaçau.

Eram verdadeiramente férias grandes, felizes e despreocupadas, mas eu continuava a contar os dias que faltavam para voltar à escola.

 


 

 

 

 

segunda-feira, 7 de março de 2016

Coincidências...


PEQUENAS COISAS QUE NOS FAZEM PENSAR

Estava eu sentada a tomar calmamente o meu café.

Numa mesa ao lado onde estavam sentadas duas senhoras e um homem, todos já de certa idade, gerou-se um pequeno rebuliço porque uma das senhoras queria uma cadeira mais alta, pois segundo dizia, naquela onde estava sentada ficava com os rins muito em baixo. Numa outra mesa estava sozinha uma outra senhora também já idosa que se ofereceu para lhe dar a sua cadeira. Quando esta senhora se levantou, olhou para mim, os nossos olhares cruzaram-se e simplesmente sorrimos. Veio ter comigo e perguntou-me se eu era professora, respondi-lhe que sim e perguntei-lhe se me conhecia. Respondeu-me que não mas pensou que eu fosse professora pela minha postura à mesa. Então disse-me que também tinha uma irmã professora já reformada, e ali ficámos a conversar um pouco. No fim disse-me assim: “a senhora professora é muito bonita” e despediu-se de mim com um beijo e desejando-me muitas felicidades.

Gostei das palavras carinhosas daquela senhora mas fiquei assim como que atónita e dei por mim a pensar na minha mãe; era ali que sempre íamos tomar café quando a mãe vinha ao Funchal e quase sempre nos sentávamos naquela mesma mesa.

Quem sabe não seria a minha mãe que através das palavras daquela senhora me queria relembrar o orgulho que sempre teve por eu ser professora e o grande amor que sentia por mim. A mãe sempre dizia que tinha uns filhos bonitos!...

O que fazem as saudades!!!...

 

Funchal, 01-10-2014

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 6 de março de 2016

O nosso Pedro


Pedro, o nosso irmão mais velho

Nasceu no dia de São Pedro, a 29 de Junho de 1952; como a mãe sempre dizia, trouxe o nome já com ele. Era ainda pequeno do colo quando o pai embarcou para o Brasil. Cresceu mimado por todos: era o menino da avó Serafina, da tia, dos avós das Fontes, da prima, da madrinha...mas era sobretudo o menino da mãe. Foi filho único até aos nove anos, quando nasceu a menina, a Ângela Serafina, após o regresso do pai, que então estivera emigrado no Curaçau.

Era uma criança inteligente e com bom ouvido musical, pois com apenas seis anos aprendeu a tocar gaita sozinho e a primeira música que tocou foi “O bailinho das couves”, como a mãe sempre contava. Quando fez exame da quarta classe, a avó Serafina queria que fosse estudar no Seminário, mas Pedro que sempre foi agarrado à mãe preferiu ficar em casa ajudando o pai.

Todos crescemos sabendo do amor especial que a nossa mãe tinha por ele, o que para nós era muito natural, porque era o nosso irmão mais velho e todos gostávamos muito dele. A mãe falava de Pedro sempre com os olhos a brilhar e muitas vezes vimos as suas lágrimas, quando no seu tempo de tropa se despedia, ao domingo, para ir para o quartel…

Quando aconteceu o 25 de Abril, estava a cumprir serviço militar no Porto; foi uma agonia em casa porque durante vários dias não soubemos dele. Todas as semanas chegavam cartas dele, uma em nome da mãe e outra no meu nome, pois eu com doze anos apenas, também lhe escrevia e contava-lhe tudo o que se passava na nossa casa.

Quis o destino que fosse tentar a vida na Venezuela. Foi lá que formou a sua família. De vez em quando escrevia uma carta e sempre perguntava à mãe como estavam os pequenos que éramos nós. Após quinze anos veio pela primeira vez à Madeira e então pôde constatar que afinal os pequenos já eram todos adultos. Foi o melhor Natal de sempre, em que estivemos todos juntos.

No dia 11 de fevereiro de 2015, lá na Venezuela, ao lado da mulher, filha e netos, o nosso Pedro partiu para a vida eterna, ao encontro da nossa mãe que certamente o recebeu de braços abertos.

 

Funchal, 13 de fevereiro de 2015

 

Reflexões


O ÚLTIMO A LEMBRAR DE NÓS

«Recentemente li  Rimas da vida e da morte, do excelente Amós Oz, que narra os delírios de um escritor que ao participar de um sarau literário começa a olhar para cada desconhecido na plateia e a criar silenciosamente uma história fictícia para cada um deles, numa inspirada viagem mental. Lá pelas tantas, em determinado capítulo, o autor comenta algo que sempre me fez pensar: diz ele que a gente vive até o dia em que morre a última pessoa que lembra de nós. Pode ser um filho, um neto, um bisneto ou um admirador, mas enquanto essa pessoa viver, mesmo a gente já tendo morrido, viveremos através da lembrança dele. Só quando essa pessoa morrer, a última que ainda lembra de nós, é que morreremos em definitivo, para sempre. Estaremos tão mortos como se nunca tivéssemos existido.»

Este é o início da crónica da Martha Medeiros, do livro " Feliz por nada".

Ao ler este texto, dei comigo a pensar naqueles que fizeram parte da minha vida e já se foram para vida eterna: aqueles com quem partilhei a minha vida desde criança e também aqueles que eu nunca conheci mas estão na minha memória através das histórias, contadas pelo pai e principalmente pela mãe, uma excelente contadora de histórias. Todos eles continuam vivos porque, apesar de já não estarem neste mundo os que viveram realmente as histórias, nós continuamos a contá-las aos mais novos, acrescentando outras que já vivemos realmente, esperando que um dia também se lembrem de contá-las...

E nunca saberemos quem foi o último que se lembrou de nós!... 
 

sábado, 5 de março de 2016

O primeiro de Maio


O 1º DE MAIO E A VISITA DO ESPÍRITO SANTO
Os preparativos começavam uns dias antes com a limpeza da casa. Era preciso lavar as vidraças das janelas, as cortinas, os tapetes, os bordados e os crochets para pôr em cima da mesa. A mãe tirava da mala uns tapetes novos, daqueles às riscas de retalhos, para pôr na sala.

            Na véspera amassávamos o pão e fazíamos os bolos: o bolo preto, ou de família, que a mãe sabia a receita de cor, e o bolo amarelo, o “Bolo de freira”, como então se dizia. Também se fazia as broas de mel e às vezes os biscoitos de manteiga. Entretanto, a mãe já tinha comprado as azeitonas e o queijo, cuja casca cor-de-rosa nos saltava à vista, o que só acontecia em ocasiões assinaladas e neste dia não podiam faltar à mesa.

            No dia da visita tínhamos que nos levantar cedo porque antes de irmos para a missa a casa já devia estar arrumada. Então a mãe abria a mala e tirava a manta mais bonita que o pai tinha trazido do Curaçau, e colocava na sua cama; depois fazia um bonito ramo com as hastes de São José, apanhadas lá mesmo na beira da nossa vinha, e colocava na mesa da sala. A sala já estava pronta para receber o Divino Espírito Santo, era só esperar.

Era sempre uma grande alegria e emoção. O pai esperava no portal para recebê-los e nós esperávamos no terreiro; primeiro entravam as bandeirinhas que nós logo beijávamos, depois vinham as saloias atirando pétalas de flores e cantando acompanhadas pelos tocadores, “Aqui chega uma visita, que já não chegou há tanto, receba com alegria, o Divino Espírito Santo”; no fim, vinham o homem da salva e o Senhor Padre que o pai cumprimentava sempre com muito respeito.

Já dentro de casa o Senhor Padre abençoava todos com a água-benta e havia música e cantigas. Então, quando vinha o Afonso dos Barros a tocar a sua rabeca, havia sempre mais um toque em honra da mãe, que era sua prima. À mãe, brilhavam-lhe os olhos marejados de lágrimas de emoção e saudade dos familiares que já haviam partido ou que se encontravam ausentes.

Antes de saírem, a mãe dava um pequeno envelope com a oferta para o Senhor Padre, outro com a oferta para a salva e outro com um dinheirinho para as saloias. Então elas cantavam “Agradeço a vossa oferta, vossa oferta é um favor, quem vos há-de agradecer, há-de ser Nosso Senhor”.

E lá ia o Espírito Santo para casa dos outros vizinhos. 

 

 

sexta-feira, 4 de março de 2016

Tradição Pascal


DOMINGO DE PÁSCOA

O Domingo de Páscoa era sempre um domingo diferente dos outros. Tinha uma atmosfera especial que até hoje continua impregnada na minha memória e na minha alma.

A lida começava logo de manhã. A mãe levantava-se cedo para ir à missa da manhã e, a não ser que não lhe desse tempo, já deixava o café feito para a matina e destinava o que cada um de nós teria de fazer enquanto estivesse na missa. Quando chegava, nós já havíamos tomado o pequeno-almoço e era hora de nos apastorarmos para irmos à missa do dia.

O primeiro a se arranjar tinha que ser o pai porque demorava mais tempo. Enquanto fazia a barba, a mãe preparava-lhe a roupa e muitas vezes ainda tinha que lhe engomar a camisa branca porque não tinha tido tempo durante a semana. E lá ia o pai todo vaidoso, de camisa branca, fato azul-escuro às riscas muito fininhas, gravata a condizer e chapéu cinzento-escuro. Antes de sair de casa a mãe ainda lhe lembrava que não se esquecesse do dinheiro para pagar a “desobriga”.

Depois também nós nos arranjávamos e íamos para a missa enquanto a mãe ficava em casa a fazer o almoço.

A missa era sempre uma cerimónia bonita. Primeiro saía a procissão em que as pequenas vestidas de branco iam à frente e uma delas levava a cruz. Eu ia sempre na procissão e muito desejava que um dia fosse eu a levar a cruz, mas como era pequena nunca era escolhida e por isso, não cheguei a concretizar esse desejo.

Logo depois das pequenas vinham os irmãos do Santíssimo Sacramento com as suas capas vermelhas, dois deles levando as bandeirinhas do Espírito Santo, por fim o pálio dourado e o senhor padre também paramentado com a capa dourada. Pela ponte adentro, enquanto passava a procissão, o cheiro a musgo e a alecrim misturava-se com o aroma das variadas flores com que as raparigas tinham desenhado o bonito tapete para a passagem do Senhor Ressuscitado.

A procissão entrava na igreja com todo o povo entoando o cântico “Ressuscitou”; lá dentro, o Círio Pascal e todas as luzes acesas faziam brilhar emoções; o cheiro a incenso chegava ao mais recôndito canto da alma.

Depois das cerimónias chegávamos a casa e a mãe já tinha o almoço pronto: um galo guisado com semilhas novas rapadas e aquele arroz branco com uma rachinha de canela, que só a mãe sabia fazer.

O almoço era servido quando estivéssemos todos à mesa e o pai não admitia que algum de nós se atrasasse; era uma regra que tínhamos que cumprir, não só no Domingo de Páscoa, mas também nos outros domingos do ano: a família toda à mesa para almoçar. A mãe primeiro servia a todos começando pelo pai e, como tal, era sempre a última a se sentar.

Depois do almoço vinham as brincadeiras próprias deste tempo da Quaresma. Nós as pequenas jogávamos às cinco pedrinhas e às prendas ou ao jogo do raminho. Os rapazes entretinham-se no jogo do pião.

Assim se passava o Domingo de Páscoa!...
 

                           












Tempo da Quaresma


A SEMANA SANTA

O tempo da Quaresma era vivido com respeito na nossa casa.

Quarta-feira de Cinzas era dia de ir à missa, levar a cruz de cinza na testa e ouvir aquela frase da qual a mãe muitas vezes nos explicava o significado: “Lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar!”

 À sexta-feira não se comia carne e não era porque houvesse falta, graças a Deus havia carne de porco na salga o ano todo. A mãe levava muito a sério estas tradições do jejum e abstinência, dizia-nos que era assim que tínhamos de fazer e ninguém questionava.

Sexta-feira também era dia de ir à via-sacra. Eu gostava de ir à via-sacra por uma razão muito simples: achava graça naquele ajoelha e levanta quando todos se viravam para o quadro que representava cada estação; e havia momentos em que até ficávamos de costas para o altar, o que vinha contradizer o que mãe sempre nos ensinou, que não nos devíamos voltar para trás quando estivéssemos na missa porque era muito feio e sobretudo uma falta de respeito.

A Semana Santa era a semana mais importante do ano, a Semana Maior, e era vivida com todo o respeito. Alguns dias antes a mãe punha os tremoços de molho, no alguidar de barro que nós tínhamos. Depois de cozidos, metia-se numa saca de serapilheira e íamos pô-los, logo de manhã, na água corrente da ribeira para ficarem curtidos; à tardinha íamos buscá-los, porque podia chover de noite e a água levá-los pela ribeira abaixo.

No Domingo de Ramos, a primeira coisa era arranjar um ramo de alecrim e flor de laranjeira para ser benzido, para depois ter em casa a evitar os maus espíritos e o mau-olhado. O pai não gostava que se apanhasse os ramos da laranjeira, porque depois iam dar menos laranjas.

A mãe, que tinha sido catequista no seu tempo de juventude, sabia como ninguém as passagens da Bíblia, e explicava-nos o significado do Domingo de Ramos, contando como se fosse uma história, a entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém. Lembro-me muito bem da bênção dos ramos no Canto da Ponte e da procissão até à igreja e toda a gente cantando “Bendito o que vem, em nome do Senhor”.

Na quarta-feira, Quarta-Feira de Trevas, como a mãe nos ensinou, era o dia de amassar o Pão da Semana Santa, porque na quinta-feira de manhã era para apastorar a casa e varrer os terreiros, tudo até ao meio-dia. Depois desta hora mais ninguém trabalhava. Então íamos a casa da madrinha buscar as amêndoas que a madrinha sempre nos dava, um saquinho a cada um, daquelas grandes que nos enchiam a boca. Lembro-me de uma vez em que a madrinha me trouxe do Funchal umas amêndoas com várias formas diferentes (miniaturas de chávenas, bules, jarros), tão engraçadas que em vez de comê-las eu queria era guardá-las.

Também a tia nos trazia amêndoas, um saco dos maiores para a mãe e um pequenino para cada um de nós. À tarde íamos à missa da Quinta-feira Santa da qual já sabíamos o episódio do lava-pés porque a mãe já nos tinha contado, referindo sempre com graça, aquela resposta que Pedro dera a Jesus, “lava não só os pés mas também a cabeça”.

A Sexta-feira Santa era um dia de recolhimento. O almoço era semilhas novas rapadas, com batata doce, inhame e bacalhau. O molho do bacalhau era feito com azeite e vinho, não se usava vinagre porque, como dizia a mãe, vinagre foi o que os judeus deram a beber a Nosso Senhor. Não se podia cantar e na rádio só passava música sacra; era um dia aborrecido. À tarde íamos às cerimónias, com a leitura da Paixão e o beijar da Cruz, tão demoradas que parecia que nunca mais acabavam. No momento da leitura da Paixão eu esperava ansiosa aquela passagem em que Pedro negava por três vezes que conhecia Jesus; já o sabia de cor pelas vezes em que a mãe, como se fosse uma história, nos contava este episódio. Em casa, a mãe também nos contava como viviam a Semana Santa no tempo em que era pequena.

No Sábado de Aleluia, era dia santo só até ao meio-dia. Depois do almoço, o pai já ia para o Lombo ou para as Fajãs plantar ou cuidar da novidade.

O Domingo de Páscoa era quase sempre um dia bonito. Eu gostava de ir na procissão e as bandeirinhas do Espírito Santo que saíam nesse dia, faziam-me antever já a alegria da Visita Pascal. Até hoje guardo na memória o perfume que emanava do tapete de flores que se fazia pela ponte adentro, para a passagem da procissão.

São memórias que não se esquecem.