A SEMANA
SANTA
O
tempo da Quaresma era vivido com respeito na nossa casa.
Quarta-feira
de Cinzas era dia de ir à missa, levar a cruz de cinza na testa e ouvir aquela
frase da qual a mãe muitas vezes nos explicava o significado: “Lembra-te que és
pó e em pó te hás-de tornar!”
À sexta-feira não se comia carne e não era
porque houvesse falta, graças a Deus havia carne de porco na salga o ano todo.
A mãe levava muito a sério estas tradições do jejum e abstinência, dizia-nos
que era assim que tínhamos de fazer e ninguém questionava.
Sexta-feira
também era dia de ir à via-sacra. Eu gostava de ir à via-sacra por uma razão
muito simples: achava graça naquele ajoelha e levanta quando todos se viravam
para o quadro que representava cada estação; e havia momentos em que até ficávamos
de costas para o altar, o que vinha contradizer o que mãe sempre nos ensinou,
que não nos devíamos voltar para trás quando estivéssemos na missa porque era
muito feio e sobretudo uma falta de respeito.
A
Semana Santa era a semana mais importante do ano, a Semana Maior, e era vivida
com todo o respeito. Alguns dias antes a mãe punha os tremoços de molho, no
alguidar de barro que nós tínhamos. Depois de cozidos, metia-se numa saca de
serapilheira e íamos pô-los, logo de manhã, na água corrente da ribeira para
ficarem curtidos; à tardinha íamos buscá-los, porque podia chover de noite e a
água levá-los pela ribeira abaixo.
No
Domingo de Ramos, a primeira coisa era arranjar um ramo de alecrim e flor de
laranjeira para ser benzido, para depois ter em casa a evitar os maus espíritos
e o mau-olhado. O pai não gostava que se apanhasse os ramos da laranjeira,
porque depois iam dar menos laranjas.
A
mãe, que tinha sido catequista no seu tempo de juventude, sabia como ninguém as
passagens da Bíblia, e explicava-nos o significado do Domingo de Ramos,
contando como se fosse uma história, a entrada triunfal de Jesus Cristo em
Jerusalém. Lembro-me muito bem da bênção dos ramos no Canto da Ponte e da
procissão até à igreja e toda a gente cantando “Bendito o que vem, em nome do
Senhor”.
Na
quarta-feira, Quarta-Feira de Trevas, como a mãe nos ensinou, era o dia de
amassar o Pão da Semana Santa, porque na quinta-feira de manhã era para
apastorar a casa e varrer os terreiros, tudo até ao meio-dia. Depois desta hora
mais ninguém trabalhava. Então íamos a casa da madrinha buscar as amêndoas que
a madrinha sempre nos dava, um saquinho a cada um, daquelas grandes que nos
enchiam a boca. Lembro-me de uma vez em que a madrinha me trouxe do Funchal
umas amêndoas com várias formas diferentes (miniaturas de chávenas, bules,
jarros), tão engraçadas que em vez de comê-las eu queria era guardá-las.
Também
a tia nos trazia amêndoas, um saco dos maiores para a mãe e um pequenino para
cada um de nós. À tarde íamos à missa da Quinta-feira Santa da qual já sabíamos
o episódio do lava-pés porque a mãe já nos tinha contado, referindo sempre com
graça, aquela resposta que Pedro dera a Jesus, “lava não só os pés mas também a
cabeça”.
A
Sexta-feira Santa era um dia de recolhimento. O almoço era semilhas novas
rapadas, com batata doce, inhame e bacalhau. O molho do bacalhau era feito com
azeite e vinho, não se usava vinagre porque, como dizia a mãe, vinagre foi o
que os judeus deram a beber a Nosso Senhor. Não se podia cantar e na rádio só
passava música sacra; era um dia aborrecido. À tarde íamos às cerimónias, com a
leitura da Paixão e o beijar da Cruz, tão demoradas que parecia que nunca mais
acabavam. No momento da leitura da Paixão eu esperava ansiosa aquela passagem
em que Pedro negava por três vezes que conhecia Jesus; já o sabia de cor pelas
vezes em que a mãe, como se fosse uma história, nos contava este episódio. Em
casa, a mãe também nos contava como viviam a Semana Santa no tempo em que era
pequena.
No
Sábado de Aleluia, era dia santo só até ao meio-dia. Depois do almoço, o pai já
ia para o Lombo ou para as Fajãs plantar ou cuidar da novidade.
O
Domingo de Páscoa era quase sempre um dia bonito. Eu gostava de ir na procissão
e as bandeirinhas do Espírito Santo que saíam nesse dia, faziam-me antever já a
alegria da Visita Pascal. Até hoje guardo na memória o perfume que emanava do
tapete de flores que se fazia pela ponte adentro, para a passagem da procissão.
São
memórias que não se esquecem.
Sem comentários:
Enviar um comentário