sábado, 27 de fevereiro de 2016

Quando eu ia à cidade


OS PASSEIOS À CIDADE
 
No tempo em que eu era pequena as viagens para a cidade eram muito aborrecidas, demoravam muito tempo e por isso, só mesmo em caso de necessidade é que alguém ia ao Funchal. O horário da Rodoeste, o carro da manhã como se dizia, passava às seis e meia e regressava ao fim da tarde, mas também havia os carros de praça que igualmente saíam ao amanhecer e regressavam mais cedo.
 
Muitas vezes eu fui à cidade no carro de praça do Mário. Teresinha, que lá ia de vez em quando por causa dos bordados, costumava levar-me com ela. Nessa noite eu já nem dormia bem, só pensando que no outro dia ia passear à cidade.
 
A minha aventura começava assim que eu entrava no carro, logo de manhã bem cedo, ainda o sol não tinha despontado. Sentada no banco de trás, eu ia sempre olhando pela janela, enquanto descíamos da ponte até à igreja, vendo as casas todas, os homens que de enxada ao ombro já iam para a fazenda, e as vizinhas que passavam com a leiteira enfiada no braço e iam ao palheiro buscar o leite para depois o levar à máquina.
 
Assim que se passava a volta do Lombo e o carro começava a andar mais depressa, eu via tudo a andar para trás: a nossa terra, o nosso palheiro, o armazém e os pinheiros, os pereiros nos Cabeceiros e nas Lajas, os castanheiros nas Fajãs, o poço dos brimbeteiros, todo o arvoredo pelas Covas acima, passando pelas Caldeirinhas até ao Chão dos Louros e pela Encumeada abaixo. Teresinha avisava-me para eu ficar quieta, a olhar só para a frente para não ficar maldisposta e eu, que já ia com o estômago meio às voltas, obedecia, não olhava mais pela janela e punha-me muito direita a olhar para a frente, sempre de olhos bem abertos observando tudo muito bem.
 
Assim que chegávamos à cidade íamos à casa de bordados do Senhor Evaristo, ali ao lado do Jardim Municipal e obrigatoriamente passávamos em frente ao lago do Jardim onde nadavam os cisnes. Todas as vezes que ali parava, olhava com espanto e uma certa pena, aquela estátua dos meninos nus e na inocência dos meus seis ou sete anos questionava-me sempre porque os tinham feito assim sem roupa; era feio andar assim nu, só mesmo os pobrezinhos que não tinham nada para vestir.
 
Depois de algumas voltas pela cidade, íamos almoçar num restaurante no Largo dos Varadouros. Ali, as mesas completas com muita gente a comer e as vozes que se sobrepunham umas às outras faziam-me uma certa confusão. Eu observava atentamente a janela passa-pratos que separava a sala da cozinha, a pressa dos empregados a levarem os pratos à respectiva mesa e a recolherem os pratos usados e achava graça à voz deles quando gritavam lá para dentro “-sai um prato de macarrão!” ou     “-sai um prato de carne guisada!”… E eu, que ainda sentia dentro de mim as curvas e contracurvas das Covas e da Encumeada, ficava ainda mais com o estômago embrulhado com todos aqueles diferentes cheiros que o meu nariz absorvia e me impregnavam até a raíz dos cabelos.
 
À tarde, quando já todas as voltas tinham sido dadas e nada mais havia a fazer, lá fazíamos a viagem de regresso. Agora até parecia que demorava mais tempo, tal era o meu grande desejo de contar à mãe, com todos os pormenores, o meu passeio à cidade.
  
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

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