O
Entrudo
Uma das lembranças mais antigas que tenho
é de ver a avó Serafina a tender os bolos e pô-los a levedar, deitando a
farinha para não pegarem na toalha, e depois cortá-los em bocados para fritar
na banha de porco. Mas também me lembro de ser bem pequena e ver a prima a
fritar as malassadas na cozinha a lenha (a cozinhinha), observando com muita
atenção como molhava os dedos na água de um canjirão de alumínio, para que a
massa não lhe pegasse e as malassadas ficassem bem redondinhas.
Depois que a avó Serafina se foi, era a mãe
que fazia as malassadas. Começava a fazê-las na quinta-feira das comadres. E
contava-nos que “naquele tempo, neste dia, os compadres serravam as comadres”,
isto é, colocavam-se num lugar mais elevado e pegavam com as mulheres, dizendo
piadas e graçolas, gritando bem alto para que toda a gente ouvisse; é claro que
elas não gostavam nada disso, nenhuma gostava de ser serrada.
Na semana seguinte era a quinta-feira dos
compadres e a mãe voltava a fazer malassadas, porque segundo dizia ”eles também
merecem”. A história deste dia era que “naquele tempo, uma vez tinham feito um
compadre a rigor e até lhe tinham feito um enterro”. Na minha imaginação eu
conseguia ver a cena toda, tal era a maneira como a mãe descrevia esse
episódio. Então a mãe já nos ia dizendo que no dia de entrudo ia fazer um
“barreleiro” de malassadas e nós acreditávamos. Um barreleiro é uma espécie de
cesto de vindima, mas um pouco mais pequeno, o que queria dizer que ia mesmo
fazer uma grande quantidade delas.
No dia de entrudo a mãe fazia as malassadas,
não um barreleiro mas uma tampa cheia. Uma tampa é um cesto de vimes redondo,
sem asa, largo e meio baixo em que se colocava a roupa lavada antes de passar a
ferro, e onde às vezes a mãe guardava pão de casa embrulhado em toalhas brancas
de algodão, as toalhas do pão que só serviam mesmo para esse fim.
A mãe também
fazia os bolos na graxa, à moda da avó Serafina, porque o pai só gostava desses
e a mãe fazia-lhe a baboseira. Na hora da ceia comíamos as malassadas com
açúcar, acompanhadas com chá; a mãe contava que no seu tempo de rapariga, em
casa da avó das Fontes, o avô fazia sempre uma caldinha de açúcar com limão
para molhar as malassadas; também nos contava as peripécias que os tios faziam
(principalmente o tio Francisco, o mais novo dos irmãos) enquanto a avó
Silvéria fritava as malassadas. Nós íamos ouvindo as histórias e nos deliciando
com as malassadas.
Neste dia de entrudo o cheiro a malassadas
fritas invadia toda a vizinhança e eu quase sempre ficava com o estômago
embrulhado e não conseguia comer mais do que duas malassadas; mas no outro dia,
gostava delas frias e já meio durinhas, com o café que todos os dias pela manhã
a mãe fazia, cevada misturada com café do bom.
Era assim o nosso Entrudo. Nesse tempo não se
falava em carnaval, a não ser o do Brasil o qual, como nos dizia o pai que já
tinha andado por lá, era uma vergonha porque as mulheres dançavam na rua quase
todas nuas.
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