sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Tempo de Inverno

 
Os dias de chuva

Em São Vicente os dias de chuva eram muito aborrecidos. Às vezes chovia dias a fio, aquela chuva miudinha, sem jeito, mas que não deixava ninguém fazer nada. Ficava tudo pingando, os terreiros e os cantos dos caminhos com lodo verde, a lenha tão húmida que para acender o lume era um tormento, custava a pegar, fazia uma fumaceira dentro da cozinha e muitas vezes a mãe irritava-se porque queria se despachar e não havia maneira de o lume se espevitar a arder.

Mas aqueles dias em que chovia forte e feio eram mesmo uma verdadeira tortura. Nestes dias não podíamos sair de casa, dar uma voltinha até à ponte, nem sequer ir a casa da madrinha. O pai não podia ir para a fazenda e entretinha-se na loja: às vezes fazia um cesto de vimes para as lidas de casa, arranjava os cabos das enxadas, outras vezes limpava e arrumava os “tabernaques” ou então tirava os grelos das semilhas e arrumava-as num canto da loja para depois plantar quando chegasse a altura.

A mãe sentava-se a bordar ao pé da janela do quarto das raparigas e nós, à roda dela, íamos ouvindo as suas histórias de antigamente e aprendendo as cantigas que nos ensinava. Às vezes Agostinho tocava gaita, nós cantávamos, e ali mesmo fazíamos um brinco. A mãe também nos ensinava as lengalengas que sabia, como aquela das dez meninas que lhes deu o tangorromangante e depois só ficaram nove, e assim sucessivamente até não ficar nenhuma. Depois vinham as adivinhas para nós descobrirmos a resposta; às vezes a mãe até nos punha a inventar as adivinhas e era risada geral quando cada um inventava a sua, pois saíam sempre coisas engraçadas. Mas o que nós esperávamos sempre eram as anedotas do Bocage, que já tínhamos ouvido a mãe contar inúmeras vezes e nos faziam rir às gargalhadas até doer a barriga.

Com aquele tempo de chuva e as tardes pequenas, anoitecia cedo. Então depois da ceia, a mãe aproveitava para bordar mais um bocado, coisa que ela muito gostava e fazia com perfeição, mas nos outros dias não lhe dava muito jeito, porque a vida de casa quase não lhe deixava tempo livre. Nós jogávamos à bisca com o pai: quem perdesse saía e entrava outro, mas o pai jogava sempre; ainda consigo ver os dedos grossos do pai a bater na madeira quando tinha o Ás ou o Sete.

Eram estas as nossas tertúlias, no tempo em que não havia televisão. Tínhamos apenas o rádio na cozinha, onde ouvíamos a música pedida e aquelas músicas do Teixeirinha que o pai adorava porque lhe faziam lembrar com emoção as terras brasileiras onde vivera por algum tempo, e onde há vários anos se tinha despedido dos seus irmãos e sobrinhos dos quais com saudade sempre falava.

 

 

 

1 comentário:

  1. Estas histórias tuas histórias, Ângela...! Como me fazem viajar a um tempo doce e delicioso que recordo com emoção... Obrigada pela tua partilha!
    Beijinhos

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