domingo, 21 de fevereiro de 2016

Sapatos e óculos

SAPATOS DE TIC-TAC
 
Cresci no meio de mulheres e raparigas que faziam dos bordados o seu meio de sustento. Primas e vizinhas, novas e mais velhas, juntavam-se em magotes, debaixo da vinha ou à sombra da laranjeira, bordando trabalhos de encomenda para a casa dos bordados. As mais novas, ainda menos experientes, bordavam toalhas de organdi, com aplicações em ponto francês, decoradas a ponto-de-sombra, ponto-de-corda, ponto-atrás, garanitos e viuvinhas. As mais velhas, com maior experiência, bordavam centros de mesa, toalhas de chá e toalhas maiores em caseado, cavacas e bastidas, pau e ponto-de-corda, garanitos, e aqueles pontinhos miudinhos a que chamavam sereno. E eu, ali no meio delas, ia ouvindo as suas conversas e histórias e já ia aprendendo a bordar o ponto-de-corda num paninho que a mãe me tinha arranjado junto com uma agulha em que havia enfiado uma linha de cor, para que eu fizesse o ponto mais direitinho. As raparigas gostavam de me ensinar, faziam-me as baboseiras todas e, ainda mal sabia enfiar a agulha já tinha um dedal pequenino para não picar o dedo.
 
De entre as conversas que por entre os bordados surgiam, estava naturalmente o valor da peça que cada uma bordava, o tempo que levariam a terminá-la e o que sonhavam comprar quando recebessem o respectivo dinheiro. As toalhas de caseado eram sempre de maior valor, e logo depois as de organdi; os naperons tinham sempre um valor mais baixo, rendiam menos dinheiro. Eu ia ouvindo e, embora pequena, também já queria participar nas conversas e dar a minha opinião.
 
Um dia, quando elas falavam que iam comprar isto e aquilo com o dinheiro do bordado, eu tive uma daquelas saídas engraçadas de criança, que ficou para a história, pois sempre que vinha a propósito a mãe falava nela, embora eu não me lembre desse facto. Dizia eu que quando fizesse dezasseis anos ia bordar uma toalha de seiscentos escudos para comprar uns sapatos de tic-tac e uns óculos. Os sapatos de tic-tac eram aqueles de salto e sola seca que as raparigas usavam e faziam barulho quando andavam nas pedrinhas de calhau do adro da igreja. Como os meus sapatos eram sandália inglesa, quando eu passava nas ditas pedrinhas do adro ninguém ouvia nada, por isso eu queria uns sapatos de tic-tac, como as raparigas grandes. Mas não consigo imaginar por que razão queria uns óculos, com certeza seria para também me sentir grande como elas.
 
Mais tarde, quando aos dezasseis anos vim estudar para o Liceu, tive os meus primeiros sapatos que poderiam fazer tic-tac nas pedrinhas do adro, mas nessa altura já não achava qualquer graça.

        Os óculos nunca foram precisos, até ao dia em que pela primeira vez senti dificuldade em enfiar uma agulha e coloquei os óculos da mãe para ver melhor. Depois os textos em letra miudinha também me custavam a ler e então tive mesmo que comprar uns óculos. E quando me viu colocar os óculos para ler, a mãe lembrou-me sorrindo aquela frase que eu havia proferido ainda bem pequena, que quando tivesse dezasseis anos ia ter uns óculos e uns sapatos de tic-tac. Finalmente tinha os tão desejados óculos.
São lembranças e histórias que o tempo não há-de levar.   
 
 

5 comentários:

  1. Amei .
    As tuas histórias transporta- me para boas recordações .
    Continua a presentear- nos com estes momentos mágicos 😘

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  2. Muito bonito Ângela! Não fui do tempo do bordado, mas do sapatinho de tic-tac, ui, ui...Beijinhos ;)

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  3. "...debaixo da vinha ou à sombra da laranjeira, bordando..." Não sei se me engano mas essa descrição me traz uma lembrança que ainda outro dia contava a alguém : qdo fui à Madeira fomos a São Vicente e nos deslocamos a pé por um certo caminho entre a casa da sua mãe (tia Terezinha da minha amiga Silveria) e a casa decseu filho Agostinho. Na volta, pelo mesmo caminho, lembro que me chamou atenção algumas portuguesas sentadas sob um arvoredo, ou uma plantação (não me recordo com detalhe) bordando e conversando. Lembro-me de ter observado e admirado e está imagem me é mto viva na memória.

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